quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Saitama Critica #8: O Último Desejo - The Witcher - Livro 1



Às vésperas da estreia da série pela Netflix, estrelada por Henry Cavil, trago para vocês a crítica do primeiro livro da série The Witcher, intitulado O Último Desejo. Afinal, por que este personagem fascina tanto os leitores, jogadores e, agora, os fãs de streaming? A base disso tudo está aqui e é disso que falaremos agora.


EDIÇÃO FÍSICA

Escrito por Adrzej Sapkowsk, o livro tem 320 páginas, publicado originalmente em 1993 – os contos são mais antigos e eram publicados nos anos 80 pela revista polonesa Fantastyka – e aqui no Brasil foi lançado pela editora WMF Martins Fontes. Suas páginas são em pólen soft, ou as conhecidas páginas amarelas.

Não foram encontrados erros de digitação ou de ortografia.

CRÍTICA

À sinopse: Geralt de Rívia é um bruxo que perambula pelo mundo em busca de trabalho, ou seja, caçar e eliminar criaturas estranhas. Isso, é claro, por uma boa quantia em moedas. Enquanto se recupera de uma missão que quase resultou em sua morte, Geralt faz alguns pequenos retrospectos de alguns de seus casos marcantes.


Se você leu a sinopse com atenção, já entendeu que o livro é dividido em contos, com uma história principal de fundo. São 13 capítulos não-lineares (variações entre passado e presente) separados por seis contos focados no passado de Geralt apresentando a dinâmica de mundo do personagem e sete no presente, mostrando sua recuperação e alguns problemas que o bruxo vai ver despontar em seu horizonte.

E se o livro pode se dar se gabar de algo, é de ser bem estruturado. As variações narrativas/temporais são bem conduzidas, os contos fazem links diretos com o presente de Geralt e os personagens tem muito a dizer. Esta não é uma obra típica de ação e aventura, mostrando que o gênero Fantasia & Espada consegue não apenas se sustentar, mas evoluir.

Mesmo tendo sido lançado há mais de 30 anos atrás, a história envelheceu muito bem. Os temas tratados continuam atuais e de forma quase reverencial, então é possível ver uma Yennefer forte desde seu conto de apresentação, desconcertando homens e mostrando seu poder, há também um conto onde se fala de humanos tomando territórios de Elfos e obrigando-os a se retirarem para as imediações menos favorecidas, numa clara referência à refugiados consequentes da Guerra entre Israel e Palestina. As doses de terror são bem interligadas com as tensões e cada momento tem uma carga e identidade própria, construída em torno de uma situação específica. Não há nada gratuito aqui.

A literatura gótica aqui é nítida e pungente. Ela desponta vigorosamente em diversos pontos como ambientação, oponentes, imperfeições dos personagens, mas me aterei à análise de Geralt como a personificação disso na obra.

Dentro da leitura gótica existe o Conceito de Prometheus. Esta ideia se baseia no Titã que roubou o fogo dos deuses, entregou aos humanos de bom grado e foi punido por outros deuses da forma mais cruel possível: Acorrentado, todos os dias tem seu fígado devorado por uma águia e enquanto ele descansa, seu órgão se regenera para que no dia seguinte o suplício se reinicie. Geralt de Rívia é prometeico às avessas. Ele é um bruxo e divide seu conhecimento com os humanos, por um preço, e paga por isso sendo odiado, muitas vezes exilado socialmente e ilhado moralmente. Isso é sempre e por quase todos. Ele é temido e evitado. Nem todos querem tratar com ele e o veem como uma figura mitológica perigosa, até mesmo amaldiçoada. Um dos melhores exemplos deste fardo provém da triste história que lhe rendeu o pavoroso apelido de Açougueiro de Blaviken, onde ele carrega um peso que não é dele porque decidiu fazer o certo, ou como se diz no livro, escolheu o mal menor.




Desta maneira, Geralt é o típico Herói Byroniano da literatura gótica. Conflitos internos potencializados por ser quem é e por jamais poder ser normal, uma criação de persona para encarar as tristezas e a eterna batalha com um mundo humano que desconfia dele e o mundo monstruoso que o odeia por serem caçados. E esse excesso de imperfeições de si mesmo reflete nas suas falhas externas. Geralt de Rívia é um excepcional estrategista, mas comete erros como todo mundo, nem tudo sai como planejado e quando ele alcança a catarse da vitória, ele guarda a alegria e o alívio para si. Apesar de ser imperfeito, ele é extremamente profissional em seu trabalho de Caçador de Monstros.

Sua robustez quanto protagonista só é desafiada quando comparada com a dicotomia dos monstros que enfrenta. Eles são complexos, com motivações pertinentes ou vítimas do destino e com um senso de perigo extremamente real. Nivellen e a Estrige são dois exemplos brilhantes de como há camadas a serem descobertas pelo leitor. Apesar de serem diametralmente diferentes em seus métodos, sendo o primeiro uma vítima resiliente ao seu destino, enquanto a segunda é furiosa e imparável, ambos dividem a mesma base: serem vítimas. Claro que há outros menos desenvolvidos quanto personagens, mas com uma rede de personagens orbitais complexos ou problemas igualmente bem cadenciados com o foco de deixar as histórias de Geralt com tons de cinza que forçam o leitor a tomar lados e decisões pelo que acredita ser o melhor, pois o protagonista é forçado a fazer isso constantemente enquanto desafia as leis e a morte.

Essa imoralidade desafiante de Geralt reflete em muitos trechos, mas a fim de evitar spoilers, não falarei diretamente sobre esse assunto. Basta saber que Andrzej consegue te fazer apaixonar por ele e sua franqueza, mas logo em seguida o odeia por conseguir ser tão babaca e sangue-frio. Ainda assim há um bom subtexto sobre o protagonista e suas emoções. Lendo com atenção, é possível ver como ele sente cada baque da vida diante dele ser o que é.

Outro ponto a se elogiar aqui é característica da linguagem do Gótico nos diálogos: Ela é seca, direta e chula. Palavrões, conversas ágeis, ofensas. Tudo isto auxilia a dar um ar atemporal a um período de histórias temporalmente bem definidas e a identificação entre personagens e leitor acaba se tornado mais natural.

O último elemento do gótico que vou tratar aqui é o Anticlericalismo, que se define como uma forma de desafiar religiões, sejam elas de quais espectros forem. À priori, a própria existência dos monstros já seria uma heresia, mas Geralt de Rívia também tem sua dose de incredulidade. Há uma certa ironia nisso. A magia é algo palpável para ele, mesmo que seja através de mostra de seres estranhos e cruéis, mas crer em deuses é algo que o protagonista não concebe. Ele debocha, ignora e até mesmo discute alguns temas religiosos. A figura de Geralt é o tom primário do ateísmo religioso, mas não da lógica fantástica a qual pertence.

Falado sobre pontos da literatura gótica, vamos de narrativa.

O livro é inferencial, ou seja, há informações que apenas dois personagens entendem durante uma conversa caso o leitor não se atente, mas consegue ser dinâmica o suficiente para que a leitura flua mesmo aos mais desavisados. Algumas coisas não são explicadas, mas estão nas entrelinhas. Por exemplo: Há um momento em que um rei dita ordens, prepotências e grosserias, mas em privado mostra-se inseguro, temeroso e com um senso de culpa latente. Há outro onde outra personagem endurecida só precisa de um único momento quase fatal para se entregar ao amor de um personagem que foi trabalhado através de elogios respeitosos e ciúmes inferencial em conversas extremamente pontuais.



Há alguns pontos positivos sobre exploração política, moedas e seus valores entre os povos, mudanças de paradigmas sociais na forma que se enxergam os monstros, toques machistas que refletem o pensamento daquele tempo (que seria um equivalente à Era Medieval), enquanto exalta a busca das mulheres em terem status e serem protagonistas de si. Monstros como cortina de fumaça para a maldade do homem também é desenvolvido como assunto banal aos personagens, deixando ao leitor preencher as lacunas sobre o assunto. Andrzej Sapkowski não negligencia nenhum tema, convidando o público a ter uma experiência literária em forma de aventura e tirando-o da zona de conforto.

As histórias são altamente envolventes e Andrzej Sapkowski mantém o nível alto com as variações de temas e o domínio do que é trabalhado em cada segmento, prendendo bem a atenção do leitor. Entre a ação, suspense, terror, horror e algumas pitadas de gore, existe até um capítulo todo dedicado à digressão, numa conversa com Iola, uma das companheiras de Geralt em sua recuperação. Há também uma história com ares de comédia, onde as conversas ácidas e até mesmo as cenas de ação são feitas para que você dê risada. E funcionam muito bem, trazendo o ar de urgência ao mesmo tempo que dá leveza cômica. Também existem algumas citações nas entrelinhas algumas histórias dos Irmãos Grimm, como A Bela e a Fera e a Branca de Neve, por exemplo. É uma história triste, que reflete muito sobre o exagero da vingança em relação às pessoas que te feriram e a extrapolação do senso de “justiçamento”. 

Isto posto, O Último Desejo é uma leitura que varia entre o épico, dramático e o incrível, não subestima o leitor e o força a refletir sobre os temas lidos. Dicotomiza sem dó, trabalha vagarosamente a complexidade e não exige maiores conhecimentos sobre o universo para o envolvimento afetivo entre quem lê o que é estabelecido. Com personagens surpreendentes, relevantes, com camadas e abraçando uma narrativa substancial, portanto, representam muito bem o gênero Espada & Feitiçaria e o levam a um passo além. É leitura obrigatória a quem quer conhecer um Geralt diferenciado dos games e que não se contenta apenas com uma série de TV. Há uma riqueza enorme de material graças a um Andrzej Sapkowski que eleva o patamar da escrita e se valoriza a todos que compreendem o que é este seu trabalho e o processo de esmero na criação de um livro.    

NOTA: 10       


Então é isso.
Espero que tenham gostado.
Boas leituras e até a próxima.
Saitama. 

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