sábado, 22 de fevereiro de 2020

Saitama Critica #11: O Apanhador de Sonhos



Esta crítica também poderia ser intitulada como: Quando Stephen King destruiu minha paciência por 654 páginas.


Rápida história a quem não sabe. Tive uma crise depressiva em março/abril do ano passado e por consequência, caí numa ressaca literária intensa. O Apanhador de Sonhos era um dos próximos a serem lidos já naquela época se não fosse por isso. E quando voltei simplesmente dei um OFF nessa história porque queria estar 100% para falar sobre ela.


Aí me esqueci do livro, depois lembrei. E aqui está o resultado.

👽EDIÇÃO FÍSICA👽

Com 656 páginas, foi escrito por Stephen King em 2001 e a edição lida foi publicada pela Editora Suma De Letras em 2013. Tem capa cartonada, páginas em pólen soft e não foram encontrados erros ortográficos ou de digitação.

👽CRÍTICA👽

Habitualmente, à sinopse: Peter, Beav, Jonesy e Henry são amigos desde a infância em Derry e todos eles têm um vínculo psíquico desde aquela época. Já crescidos e uma vez por ano, se encontram na floresta por 8 dias para caçar. Mas desta vez algo estranho acontecerá. Luzes no céu, um fungo maldito e seres alienígenas estarão à espreita. O grupo de amigos precisará não apenas de suas “habilidades especiais” para sobreviver, como também terão de buscar a ajuda do quinto elemento do grupo: um garoto com síndrome de down.

Posso dar facilmente dez motivos para que você leia ao menos 10 livros de Stephen King na sua vida (ele escreveu mais ou menos umas 50 obras até hoje). Ele sabe ser tenso, consegue amedrontar, chocar, te fazer pensar. Mistura de forma muito sagaz religião e antagonismo, consegue linkar muito bem suas histórias dentro do Kingverso criado, criou seres que marcam a cultura pop até hoje, não costuma poupar o leitor de seu dom para suspense e tem livros realmente memoráveis.

Depois deste parágrafo inteiro elogiando o Mestre, é preciso dizer: Quando King acerta, é na mosca. Quando ele erra, enfia os dois pés na jaca sem a menor dó. E aqui está um bom exemplo deste segundo caso.

O Apanhador de Sonhos tem um potencial tremendo. Mistura ficção científica com terror e com uma noção importante de representatividade. Quando foi que você leu sobre portador de necessidades especiais como parte vital de uma história do gênero? Há boas ideias inspiradas em Aliens, A Guerra dos Mundos e Independence Day. King também bebe da própria fonte. É inegável que ele teve influências diretas de IT. O grupo de jovens está ali com alguns vazios existenciais, dois vilões principais, os vai e vêm temporais também assim como as interrupções em momentos de tensão e a entidade que precisa ser detida a todo custo.

Beaver, Peter, Henry Jonesy

Mas como escrevi acima, falo de potencial e não de prática. Claro que há bons momentos. A convivência de Duddits (o rapaz com síndrome de Down) com o grupo é ótimo, assim como sua relação individual com cada um deles também sabe ser tocante. Duddits é um personagem difícil de não se apegar. Ele é espirituoso, manhoso, feliz. A ideia de que ele transmite existência motivacional ao grupo dificilmente não é sentido pelo leitor também. É bom vê-lo quando aparece na obra. É bom ver a dinâmica do personagem diante das dificuldades principais do livro e sua representação perante os olhos de Beav, Pete, Jonesy e Henry. A sensação de pertencimento é palpável.

O vínculo entre o grupo também é bem representado. A amizade incondicional beira a uma interessante veneração. É uma versão resumida e simplificada do Clube dos Perdedores, sem os conflitos, sem as complexidades, sem Beverly. Ser exclusivamente masculino é narrativamente importante pela ambientação da caçada, uma prática majoritariamente masculina nos EUA e em grande parte do mundo em que isso ocorre. Existir um Clube do Bolinha, desde que com um bom motivo, não precisa ser literariamente desvantajoso.

A tensão dos primeiros contatos com o Fungo Ripley (nome dado na história e autoexplicativo) é marcante assim como suas consequências tanto no micro quanto no macro. Sem entregar muitos spoilers, é possível afirmar que não estamos diante de um risco vazio e sem peso, Mas infelizmente isso tropeça numa certa necessidade de Stephen King em nos familiarizar tanto com esta mazela que, posteriormente, ela perde o fator “ameaça” e se torna mais urgente do que necessariamente perigosa.

Para terminar, Abe Kurtz, o vilão do núcleo militar do livro é definitivamente um excelente antagonista. Há um bom paralelo com o nazismo quando se trata do personagem. Autoritário, nitidamente fascista – sobrepondo seu estadismo ao bem-estar geral e imposições morais sobre comandados – não aceitando, inclusive, opiniões contrárias, reagindo de forma violenta e/ou ameaçadora enquanto coloca sobre a religião e sobre si mesmo e a hierarquia/disciplina militar a certeza de um trabalho bem feito em nome de um bem maior. Um estadismo extremo, se preferir. Até o final da história é possível sentir sua vilania, loucura e incerteza das atitudes que tomará.

Então, como esta obra pode ser ruim?

A começar, O Apanhador de Sonhos é generalista e raso. Nada do que é mostrado, com raras exceções alcança uma profundidade realmente relevante. A religiosidade, sexualidade, vazios existenciais, depressão e algumas irresponsabilidades diante da saúde mental alheia: eis alguns pontos superficiais e que renderiam momentos incríveis. A amizade do grupo de protagonistas também se perde a cada um dos flashback’s que se tornam rotineiramente e negativamente corriqueiros, assim como são erráticos e pouco agregam na maior parte esmagadora das vezes. Os mesmos flashbacks, aliás, são extremamente descritivos e, unidos à generalização, se tornam maçantes. Perdem em vínculo e emotividade para cair na autoafirmação.

Também chamada no livro de "Fuinha de merda". Não é piada.

O excesso de descrições acontece também nas digressões. Sim, meus caros, todos os autores usam digressões em suas obras. A questão é como ela é utilizada: ou como fator complementar ou suplementar da narrativa ou como objeto de inchaço da obra. Stephen King já variou entre esses dois pontos em diversas ocasiões, mas aqui está descaradamente claro que ele busca apenas tornar seu livro maior com tanto e ao mesmo tempo nada a se dizer sobre tantas coisas.

Falando em inchaço, as últimas 250 páginas do livro são absolutamente desnecessárias. O livro, que de início se apresenta como um thriller na floresta, se torna um thriller militar e depois se torna um pretensioso e enrolado off-road que nunca acaba. Sério. Nunca acaba mesmo. A leitura se torna, assim, extremamente mecânica e dolorosa. Conversas intermináveis, sejam de forma vocal ou mental (sim, telepatia), assim como lembranças e mais lembranças, descrições e mais descrições. Tudo é demais aqui. Exageradamente despudorada de limites. Poucas vezes vi um autor se valendo tanto de seu nome num livro. Stephen King aqui, joga com o peso da camisa.

Outro ponto é a falta de foco do objeto. Tantas situações se perdem e, percebendo que há pouco com o realmente foi trabalhado até então, a narrativa é concentrada em suas catarses e tão apenas nas urgências das mais variadas naturezas que o autor consegue misturar enquanto lida com uma doença estranha e mentes invadidas. Já escrevi outras vezes como o excesso de picos de tensão tornam qualquer história monótonas justamente pelo costume que causa ao leitor durante sua execução e aqui não é exceção. Tensão e clímax quando acontecem o tempo todo, não surpreendem depois de um tempo. O desenvolvimento, assim, se torna nulo e sua estética inexiste completamente que o resto é precário, já que os MaCguffins que tanto movem tramas e motivações são inúmeros e tão instáveis dentro dos contextos que o que resta é torcer para que a história acabe logo.

Sr. Cinza

duas coisas extremamente incômodas na história e que precisam ser ditas porque afetam diretamente o entendimento do que um Narrador-Observador faz, que é contar a história com certo distanciamento. A primeira delas é de ordem escatológica. Nunca vi tantas descrições desnecessárias sobre gases, arrotos e seus odores. A primeira dinâmica em que essas coisas estão envolvidas são necessárias. O problema é que depois, mesmo quando o leitor está familiarizado com os... procedimentos do Fungo Ripley, tudo é repetido à exaustão. Já a segunda é de uma ordem mais sociológica e de coerência. O Narrador-Observador tem o papel de ser impassível. Ainda que existam parcas variações sobre o tema (e que são válidas), usar da pretensa jocosidade como jogo de palavras não auxilia em nada. Assim, a palavra “retardado” durante a obra é utilizada tantas vezes que cansei de contar, assim como a palavra “bocetinha” que, mesmo quando a situação que a envolve passou, continua ser dito em inserções desmedidas.

O excesso de núcleos também afetam. São quatro amigos, cada um com seu protagonismo que disputa espaço com o núcleo militar e seus dois protagonistas/antagonistas, assim como os espaços para Duddits que são abertos aleatoriamente e o próprio Sr. Cinza que tem muitas páginas dedicadas.  Contando por baixo, você tem oito personagens ao longo de apenas 650 páginas que precisam de desenvolvimento, conflitos, resoluções dentro de uma coesão narrativa e com finais satisfatórios (algo que Stephen King nem sempre consegue dar). Não preciso nem dizer o resultado disso, não é?

Sr. Cinza de novo? Não. É só o Stephen King. 

E para terminar, quero falar sobre o segundo vilão da história: O Sr. Cinza. É desinteressante e com uma evolução negativa onde, ao invés de ficar cada vez mais denso, traz uma rasa complexidade que pouco envolve a leitura, sequer abraça mistérios que seriam naturais de uma situação que ele vive em sua missão. As limitações que King impõe nas questões mentais entre o poderio do Sr. Cinza e do isolamento de outro personagem são nitidamente roteirismos para que ele possa dar um final feliz à trama. Isso que eu resolvi nem comentar sobre algumas confusas inserções sobre o Sr. Cinza antes mesmo dele entrar na história, misturando flashbacks’s com o futuro, no caso seria o presente, dos personagens. Fiz vista grossa porque o texto está com quase 1800 palavras.

E como um bônus: Os Easter-Eggs sobre IT estão lá. São quatro e duas delas não servem para rigorosamente nada. As outras duas estão conectadas à história e são bem funcionais. A última em si, que se trata de uma criança perdida em Derry é diretamente parte do contexto do livro e bem-vinda. E é só.

Isto posto, O Apanhador de Sonhos é uma obra minimamente decepcionante e cheia de Se’s
Se fosse menor em escala;
Se houvesse mais centralização narrativa;
Se desse mais espaço de forma competente ao que realmente era importante;
Se não se arriscasse tanto onde não precisava;
Se não se levasse a sério demais;
Se não se prestasse a um reducionismo barato;
Se fosse devidamente depurado e limpado dos excessos;
Se fosse bom.
Stephen King é o nome mais relevante na literatura de horror contemporâneo e nada tira este mérito do autor, mas não dá pra aliviar diante de um despautério desses. Simplesmente não dá.



👽NOTA: 4,0

 Então é isso. Espero que tenham gostado. 
Até a próxima e boas leituras.
Saitama.


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