Esta crítica também poderia ser intitulada como: Quando Stephen King destruiu minha paciência por 654 páginas.
Rápida história a quem não sabe. Tive uma crise depressiva em março/abril do ano
passado e por consequência, caí numa ressaca literária intensa. O Apanhador de
Sonhos era um dos próximos a serem lidos
já naquela época se não fosse por isso. E quando voltei simplesmente dei um OFF
nessa história porque queria estar 100% para falar sobre ela.
Aí me esqueci do livro, depois lembrei. E aqui está o resultado.
👽EDIÇÃO FÍSICA 👽
Com 656 páginas, foi escrito por Stephen King em 2001 e a
edição lida foi publicada pela Editora Suma De Letras em 2013. Tem capa cartonada,
páginas em pólen soft e não foram encontrados erros ortográficos ou de
digitação.
👽CRÍTICA 👽
Habitualmente, à sinopse:
Peter, Beav, Jonesy e Henry são amigos desde a infância
em Derry e todos eles têm um vínculo psíquico desde aquela época. Já crescidos
e uma vez por ano, se encontram na floresta por 8 dias para caçar. Mas desta
vez algo estranho acontecerá. Luzes no céu, um fungo maldito e seres
alienígenas estarão à espreita. O grupo de amigos precisará não apenas de suas
“habilidades especiais” para sobreviver, como também terão de buscar a ajuda do
quinto elemento do grupo: um garoto com síndrome de down.
Posso dar facilmente dez
motivos para que você leia ao menos 10 livros de Stephen King na sua vida (ele
escreveu mais ou menos umas 50 obras até hoje). Ele sabe ser tenso, consegue
amedrontar, chocar, te fazer pensar.
Mistura de forma muito sagaz religião e antagonismo, consegue linkar muito bem
suas histórias dentro do Kingverso
criado, criou seres que marcam a cultura pop até hoje, não costuma poupar o
leitor de seu dom para suspense e tem livros realmente memoráveis.
Depois deste parágrafo inteiro elogiando o Mestre, é preciso dizer: Quando King acerta, é na mosca. Quando ele erra, enfia os dois pés na jaca sem a
menor dó. E aqui está um bom exemplo deste segundo caso.
O Apanhador de Sonhos tem um potencial tremendo. Mistura ficção científica com terror e com uma noção
importante de representatividade. Quando foi que você leu sobre portador de
necessidades especiais como parte vital de uma história do gênero? Há boas
ideias inspiradas em Aliens, A Guerra
dos Mundos e Independence Day. King também bebe da própria fonte. É
inegável que ele teve influências diretas de IT. O grupo de jovens está ali com
alguns vazios existenciais, dois vilões principais, os vai e vêm temporais
também assim como as interrupções em momentos de tensão e a entidade que
precisa ser detida a todo custo.
Beaver, Peter, Henry Jonesy |
Mas como escrevi acima, falo de potencial e não de prática.
Claro que há bons momentos. A convivência de Duddits (o rapaz com síndrome de Down) com o grupo é ótimo, assim
como sua relação individual com cada um deles também sabe ser tocante. Duddits
é um personagem difícil de não se apegar. Ele é espirituoso, manhoso, feliz. A
ideia de que ele transmite existência motivacional ao grupo dificilmente não é
sentido pelo leitor também. É bom vê-lo quando aparece na obra. É bom ver a dinâmica do personagem diante das
dificuldades principais do livro e sua representação perante os olhos de Beav,
Pete, Jonesy e Henry. A sensação de pertencimento é palpável.
O vínculo entre o grupo também é bem representado. A amizade
incondicional beira a uma interessante veneração. É uma versão resumida e simplificada do Clube dos
Perdedores, sem os conflitos, sem as complexidades, sem Beverly. Ser
exclusivamente masculino é narrativamente importante pela ambientação da
caçada, uma prática majoritariamente masculina nos EUA e em grande parte do
mundo em que isso ocorre. Existir um Clube do Bolinha, desde que com um bom motivo, não precisa ser
literariamente desvantajoso.
A tensão dos primeiros contatos com o Fungo Ripley (nome dado na história e
autoexplicativo) é marcante assim como suas consequências tanto no micro quanto
no macro. Sem entregar muitos spoilers, é possível afirmar que não estamos
diante de um risco vazio e sem peso, Mas infelizmente isso tropeça numa certa necessidade de Stephen King em nos
familiarizar tanto com esta mazela que, posteriormente, ela perde o fator
“ameaça” e se torna mais urgente do que necessariamente perigosa.
Para terminar, Abe Kurtz, o vilão do núcleo militar do livro é definitivamente um excelente
antagonista. Há um bom paralelo com o nazismo quando se trata do personagem.
Autoritário, nitidamente fascista –
sobrepondo seu estadismo ao bem-estar geral e imposições morais sobre
comandados – não aceitando, inclusive, opiniões contrárias, reagindo de forma
violenta e/ou ameaçadora enquanto coloca sobre a religião e sobre si mesmo e a
hierarquia/disciplina militar a certeza de um trabalho bem feito em nome de um
bem maior. Um estadismo extremo, se
preferir. Até o final da história é possível sentir sua vilania, loucura e
incerteza das atitudes que tomará.
Então, como esta obra pode ser ruim?
A começar, O Apanhador de Sonhos é generalista e raso. Nada do que é mostrado, com raras exceções
alcança uma profundidade realmente relevante. A religiosidade, sexualidade, vazios existenciais,
depressão e algumas irresponsabilidades diante da saúde mental alheia: eis
alguns pontos superficiais e que renderiam momentos incríveis. A amizade do
grupo de protagonistas também se perde a cada um dos flashback’s que se tornam
rotineiramente e negativamente corriqueiros, assim como são erráticos e pouco agregam na maior
parte esmagadora das vezes. Os mesmos flashbacks, aliás, são extremamente
descritivos e, unidos à generalização, se tornam maçantes. Perdem em vínculo e
emotividade para cair na autoafirmação.
Também chamada no livro de "Fuinha de merda". Não é piada. |
O excesso de descrições acontece também nas digressões. Sim, meus caros, todos os
autores usam digressões em suas obras. A questão é como ela é utilizada: ou
como fator complementar ou suplementar da narrativa ou como objeto de inchaço da obra. Stephen King já variou
entre esses dois pontos em diversas ocasiões, mas aqui está descaradamente
claro que ele busca apenas tornar seu livro maior com tanto e ao mesmo tempo
nada a se dizer sobre tantas coisas.
Falando em inchaço, as últimas 250 páginas do livro são
absolutamente desnecessárias. O livro, que de início se apresenta como um thriller na floresta, se torna um
thriller militar e depois se torna um pretensioso e enrolado off-road que nunca
acaba. Sério. Nunca acaba mesmo. A leitura se torna, assim, extremamente
mecânica e dolorosa. Conversas intermináveis, sejam de forma vocal ou mental
(sim, telepatia), assim como lembranças e mais lembranças, descrições e mais
descrições. Tudo é demais aqui. Exageradamente despudorada de limites. Poucas
vezes vi um autor se valendo tanto de seu nome num livro. Stephen King aqui,
joga com o peso da camisa.
Outro ponto é a falta de foco do objeto. Tantas situações se
perdem e, percebendo que há pouco com o realmente foi trabalhado até então, a
narrativa é concentrada em suas catarses e tão apenas nas urgências das mais
variadas naturezas que o autor consegue misturar enquanto lida com uma doença
estranha e mentes invadidas. Já escrevi outras vezes como o excesso de picos de
tensão tornam qualquer história monótonas
justamente pelo costume que causa ao leitor durante sua execução e aqui não é
exceção. Tensão e clímax quando acontecem o tempo todo, não surpreendem depois
de um tempo. O desenvolvimento, assim, se torna nulo e sua estética inexiste
completamente que o resto é precário, já que os MaCguffins que tanto movem
tramas e motivações são inúmeros e tão instáveis dentro dos contextos que o que
resta é torcer para que a história acabe logo.
Sr. Cinza |
Há duas coisas
extremamente incômodas na história e que precisam ser ditas porque afetam
diretamente o entendimento do que um Narrador-Observador faz, que é contar a
história com certo distanciamento. A primeira
delas é de ordem escatológica. Nunca vi tantas descrições desnecessárias sobre
gases, arrotos e seus odores. A primeira dinâmica em que essas coisas estão
envolvidas são necessárias. O problema é que depois, mesmo quando o leitor está
familiarizado com os... procedimentos do Fungo Ripley, tudo é repetido à
exaustão. Já a segunda é de uma
ordem mais sociológica e de coerência. O Narrador-Observador tem o papel de ser
impassível. Ainda que existam parcas variações sobre o tema (e que são
válidas), usar da pretensa jocosidade como jogo de palavras não auxilia em
nada. Assim, a palavra “retardado” durante a obra é utilizada tantas vezes que
cansei de contar, assim como a palavra “bocetinha” que, mesmo quando a situação
que a envolve passou, continua ser dito em inserções desmedidas.
O excesso de
núcleos também afetam. São quatro amigos, cada um com seu protagonismo que
disputa espaço com o núcleo militar e seus dois protagonistas/antagonistas,
assim como os espaços para Duddits que são abertos aleatoriamente e o próprio
Sr. Cinza que tem muitas páginas dedicadas.
Contando por baixo, você tem oito personagens ao longo de apenas 650
páginas que precisam de desenvolvimento, conflitos, resoluções dentro de uma
coesão narrativa e com finais satisfatórios
(algo que Stephen King nem sempre consegue dar). Não preciso nem dizer o
resultado disso, não é?
Sr. Cinza de novo? Não. É só o Stephen King. |
E para terminar, quero falar sobre o segundo vilão da
história: O Sr. Cinza. É
desinteressante e com uma evolução negativa onde, ao invés de ficar cada vez
mais denso, traz uma rasa complexidade que pouco envolve a leitura, sequer
abraça mistérios que seriam naturais de uma situação que ele vive em sua
missão. As limitações que King impõe
nas questões mentais entre o poderio do Sr. Cinza e do isolamento de outro
personagem são nitidamente roteirismos para que ele possa dar um final feliz à
trama. Isso que eu resolvi nem comentar sobre algumas confusas inserções sobre
o Sr. Cinza antes mesmo dele entrar na história, misturando flashbacks’s com o futuro,
no caso seria o presente, dos personagens. Fiz vista grossa porque o texto está
com quase 1800 palavras.
E como um bônus: Os Easter-Eggs sobre IT estão lá. São quatro e duas delas não servem para rigorosamente
nada. As outras duas estão conectadas à história e são bem funcionais. A última
em si, que se trata de uma criança perdida em Derry é diretamente parte do
contexto do livro e bem-vinda. E é só.
Isto posto, O Apanhador de Sonhos é uma obra minimamente
decepcionante e cheia de Se’s.
Se fosse menor em escala;
Se houvesse mais
centralização narrativa;
Se desse mais
espaço de forma competente ao que realmente era importante;
Se não se
arriscasse tanto onde não precisava;
Se não se levasse
a sério demais;
Se não se
prestasse a um reducionismo barato;
Se fosse
devidamente depurado e limpado dos excessos;
Se fosse bom.
Stephen King é o nome mais relevante na literatura de horror
contemporâneo e nada tira este mérito do autor, mas não dá pra aliviar diante
de um despautério desses. Simplesmente não dá.
👽NOTA: 4,0
Então é isso. Espero que tenham gostado.
Até a próxima e boas leituras.
Saitama.
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