segunda-feira, 15 de junho de 2020

Saitama Critica #17: O Homem Do Castelo Alto



Já que todo mundo fala de nazismo hoje em dia, faremos isso também, só que do jeito certo. 

Promessa feita, promessa cumprida. Vamos ao que interessa.

EDIÇÃO FÍSICA

O Homem do Castelo Alto é um livro escrito por Philip K. Dick em 1962 e relançado pela Editora Aleph em 2019 contendo capa cartonada e páginas em pólen soft. Uma obra fisicamente bem protocolar.

Não foram encontrados erros de ortografia e sim de digitação na pág. 73 [“fi-ica”], Página 97 - filosófi-icas (Obrigado, Wagner).

CRÍTICA

AVISO: Este livro é bastante estudado em diversos meios, portanto não vejam o texto abaixo como um veredito assertivo ou exato sobre todos os contextos filosóficos que ele carrega. É apenas uma opinião técnica e estética de um leitor técnico e estético. Portanto, que a crítica seja um início e não um fim a cerca de sua possível leitura.

Por hábito, à sinopse: No ano de 1962, os Estados Unidos vivem uma colonização alemã e japonesa após o fim da II Guerra Mundial, onde ambos os países aliados do Eixo venceram. Dentro disto, pessoas comuns tentam sobreviver num cenário econômico e social completamente sensível, difícil e tenso.

Clássico de Philip K. Dick, O Homem Do Castelo Alto, definitivamente, é uma obra que se pretende a alguma coisa interessante e numa linguagem peculiar. É importante dizer que o termo de especulativa, antes de mais nada, se propõe a falar sobre uma possibilidade calcada em fatos históricos, científicos, sociais ou religiosos. Toda Distopia especula, isto é fato. Mas nem toda a especulação se torna, de fato, uma distopia de qualidade.



Dito este pequeno contexto, vamos por partes:

Dick divide o livro em cinco pequenos núcleos de protagonistas: 
1) Frank Frink e o núcleo do homem civil tentando viver sua vida cotidiana como judeu num EUA tomado pelos nazistas e japoneses; 
2) Juliana Frink como a mulher que anseia por liberdade diante do autoritarismo italiano; 
3) Robert Childan é o clássico exemplo de homem entre moralidade e capitalismo; 
4) Sr. Tagomi como o vínculo japonês do livro; 
5) Sr. Baynes é um homem enigmático que permeia conceitos de humanidade e empatia.

Por incrível que pareça, os personagens, apesar de serem numerosos para uma história de trezentas e duas páginas, são a parte menos importante quanto individualismo da obra. Não existe uma aproximação do leitor com eles que seja racionalizada ou pelo emocional. Aqui, os protagonistas não saem da segunda camada e qualquer vínculo fica um tanto impossibilitado por causa das linhas contextuais que o livro trabalha. E em O Homem do Castelo Alto, isso não chega a ser um defeito se houver um certo desprendimento e entendimento que há coisas maiores que valem a pena ser esmiuçadas.

Como o livro se trata de uma distopia, o apanhado principal é a apresentação do cenário histórico como exegese* (ver em Dicionário informal ao fim do texto). Dick vai a fundo na imagética da obra de maneira não casual, ou seja, sem apresentar muitas descrições para o leitor, mas trazendo sublinhas das situações que agregam ao momento da humanidade apresentada. Dentro desta tecnicalidade, a narrativa é impecável e, por que não dizer, perturbadora usando muito pouco. Isto pode ser atribuído às palavras exatas que o autor as usa precisamente. Ele sabe alongar as sentenças em momentos de relaxamento da história e, sabiamente, separa melhor a ação quando necessário em frases curtas, de maneira que se obriga a escrever de maneira mais objetiva. De início parece inútil citar uma coisa dessas mas há toda uma metodologia atrás disso e que é mais do que funcional. E chamo de "funcional" porque, ao ler com mais atenção, os trechos se mostram bem divididos e conseguem trazer as sensações necessárias à tona. Dos sentimentos mais corriqueiros, à grandeza.   


Por isso, sob a ótica de desenvolvimento, o livro é lento. Os elementos naturalistas são pontuais, porém contundentes. Tanto o Determinismo do Nazismo como peso no destino dos personagens, quanto seu engajamento político e uma certa involução civilizatória auxiliam na ambientação, porém, são utilizados à exaustão. O próprio devaneio tecnológico alemão que entra em choque com o período dos anos 60 causam alguma estranheza, por mais que existam justificativas que, como sempre, são entrelinhas. Este sentimento é mais pungente no que se tange planos espaciais dos quais soa muito mais como propaganda para uma sensação de Guerra Fria que há entre a Alemanha e o Japão. Ainda assim, na falta de uma explicação melhor, é tudo propositadamente quase anacrônico sem realmente sê-lo.

Portanto, é possível perceber a quebra altamente contemporânea dos limites da linguagem erudita e sua organicidade com o popular quando O Homem Do Castelo Alto varia entre suas várias camadas mais complexas e entra na narrativa simplificada quando necessário. Isto é visível tanto no espelho dos personagens e nas similaridades metafóricas que vivem de acordo com as situações, cada qual ao seu modo periférico, até o conceito metalinguístico do livro ficcional “ O Gafanhoto Torna-se Pesado”, que vários dos protagonistas conhecem durante o passar das páginas. Este livro dentro do livro funciona como transposição e releitura da nossa própria estupefação ao perceber que o Nazismo sendo vencedor. Na ficção do autor imaginário Hawthorne Abendsen a intenção é chocar os personagens com uma distopia em que a Alemanha e seus aliados são vergonhosamente derrotados. Eis um elo de ligação que funciona de maneira mais aberta com o leitor: A incredulidade de fatos imaginários, mas que ao mesmo tempo, ainda reverberam atuais e perigosos.

E isto liga-se à narrativa que, por se focar num realismo micro diante do macro preocupado em esmiuçar a sociedade pós-guerra mais do que as personalidades individuais como um todo, permite-se abrir desenvolvimentos sem maiores explicações, incluindo seus desfechos abertos e pontualmente reflexivos. Não soa necessariamente errado, mas não parece completar num círculo. Não deixa de ser um pedaço faltante. E nisto, um paralelo irônico: O I Ching – uma espécie de sincretismo filosófico de cinco mil anos que foi transformado em interpretação de frases sábias e que dita o destino de certos personagens de forma fanática a ponto de sequer se sentirem aptos a tomarem decisões – sempre tão disposto a fechar ideias erradas ou destinos específicos, acaba virando um contraponto involuntário à certas liberdades narrativas de Dick. Destoa, porém, é possível encarar isso dentro dos subtextos da obra.

Outro ponto que, apesar de específico, é marcante, é a apropriação cultural. Seja nas bicitaxis que apenas chineses dirigem em plenos EUA ou a ideia de tirar de totens americanos simbologias dos mesmos chineses para se aproveitar da crença dos mais pobres são dois exemplos disso. Há também o contexto mais extremos desta situação em outras duas vertentes: a primeira é quando trata-se de negros, pois os que sobraram são escravos em todas as escalas de existência que lida também com a subserviência à situação. A segunda, e mais densa, é em como a Alemanha toma para si todo e qualquer judeu no mundo, independente da nacionalidade. Não é apenas a teocracia disfarçada de sociologia, mas também autocracia  normatizada de que todo e qualquer judeu prossegue ad eternum um câncer existencial.

Mais uma questão profunda se dá ao apresentar tantos subtextos como economia, sociedade, relações diplomáticas, tensões governamentais e outros. Assim, o autor traz à baila a discussão do que é formado um país. Seria de seus concidadãos? Seu comércio? A aceitação de holocaustos continentais? A plutocracia (O rico que interfere no poder para outros ricos, ou o rico que governa para seus pares) é o caminho natural num governo ideologicamente afetado mesmo que este fosse nazista? O livro não se relega a responder nada disso, porém, faz algo ainda mais complexo e decide que o leitor precisa ter essas dúvidas e, talvez, se interessar em pensar numa resposta.

O autor Philip K. Dick. 1928 - 1982
A catarse também é utilizada, mas como objeto religioso três vezes. As situações são distintas, sendo uma voltada ao capitalismo e outras duas como processos de descoberta interior. Também é possível entrar neste mesmo contexto ao analisar o estudo de personagem quanto autor, o que linka com o já citado Hawthorne Abendsen. É rápido, mas não obstante a dar o tom de toda a ideia por trás dO Homem Do Castelo Alto, consegue trazer à tona Philip K. Dick e sua ideia de autoralidade sobre uma ideia, assim como sua motivação.

Isto posto, O Homem Do Castelo Alto é um livro de semiótica* que se aprofunda com simplicidade e é uma obra exigente de maior atenção. Mas é inegável que existe um mundo perfeitamente palpável e com estética* pesada aqui e que não faz a menor questão de explicar quase nada. Pouco otimista e demasiadamente histórico, O Homem do Castelo Alto é quase litúrgico dentro de uma grande mentira. Leitura crassa, porém, para poucos e instigante dentro das limitações de cada um, ainda que tenha lá seus tropeços. Ao usar o nazismo, um medo secular supremo, para falar de desigualdades e outros pecados humanitários, o livro não apenas se propõe a apontar possibilidades, consegue ser atual e provocativo a quem souber aproveitá-lo.

NOTA: 9,0
 
Então é isso. Espero que tenham gostado. 
Abraços e boas leituras.
Saitama de R'lyeh

🔴Dicionário Informal
Exegese: Análise, interpretação, explicação detalhada de uma obra. 
Semiótica: Modo de reflexão sistemática sobre signos e significados, tudo que carrega algum sentido e transmite a informação da obra.
Estética: Mecanismo estudado que proporciona efeito emocional em seu leitor com sua sensibilidade.
Teocracia: Sistema político baseado em religião.
Autocracia: Sistema político baseado no poder de decisão de apenas uma pessoa. 

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