quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Cinescópio #3: Alice Júnior

Prometi um filme mais leve que Mignonnes, então aí está.

Título: Alice Júnior

Lançamento: 2019/2020

Direção: Gil Baroni

Roteiro: Luiz Berttazzo e Adriel Silva

Elenco: Emmanuel Rosset, Anne Celestino Mota, Matheus Moura, Thaís Schier, Surya Amitrano, Igor Aughusto, Katia Horn e Gretchen

Onde posso ver: Netflix, Youtube

Sinopse: Alice Júnior, uma adolescente trans pernambucana, é obrigada a sair de Recife por causa do trabalho de seu pai, um renomado perfumarista francês. Assim, ambos se mudam para uma cidade chamada Araucárias do Sul, no Paraná. Lá o extremismo impera e o preconceito também, de uma maneira que Alice precisará passar pela solidão de ser uma estranha num lugar novo e sobreviver.

CRÍTICA

Apesar do que a sinopse pode parecer, Alice Júnior é uma comédia, pelo menos em seus pilares mais crassos. Os momentos que criam uma representação das dificuldades trans, assim como as pontualidades discursivas que buscam passar uma mensagem, também estão lá. Portanto, não seria exagero falarmos que a comédia vem envolta num “Q” de realidade, desta maneira, com todas as situações de quem sofre preconceito e bullying, a comicidade acaba rivalizando com o drama.

Falando primeiramente das tecnicalidades do filme. Os planos de câmera escolhidos pelo diretor Gil Baroni são altamente protocolares e operantes. Varia-se entre Plano Americano (focado do joelho para cima dos personagens e com um pouco mais de atenção nas expressões faciais) e Primeiros Planos, conhecidos como Close-Up’s (focados inteiramente nas expressões dos personagens). Há alguns Planos Abertos (focados na paisagem) que são exaltados pelo bucolismo das paisagens do Paraná. Como dito no início deste parágrafo, são enquadramentos realmente comuns. A título de curiosidade, no tocante O Amor De Catarina, de 2016 (que você pode conferir gratuitamente AQUI), Baroni se arrisca muito mais e atinge resultados técnicos bem melhores, mesmo que também se permita à alguns cacoetes que servem de muleta em suas obras. Mas em saldo geral, não vi nenhum refinamento gritante na forma do diretor trabalhar daquele ano para cá.

fotografia é muito bonita, me deixou impressionado até pelo orçamento utilizado de R$ 850.000,00, que de fato, é limitado ainda que tenha abocanhado a maior parte dos 2,6 milhões de Reais que a Fundação Cultural de Curitiba disponibilizou para quase 20 outros projetos no ano de 2015 – Em tempo: O filme foi gravado em 2016/2017, passou por alguns festivais com boa receptividade e foi comprado recentemente pela Netflix, lançado neste ano de 2020 -, o que não deixa de mostrar seu potencial, até pelo cunho social. Com um valor desses, seria importante que o filme fosse dinâmico nas apresentações, conflitos, clímax e resoluções sem parecer apressado, o que ele até consegue nos primeiros 15 minutos. A agilidade varia bem entre o lúdico e o inferencial neste começo. Não que não haja o mesmo depois, mas fica nitidamente mais esparso, o que quebra um pouco o ritmo.

Já que falei de pressa, o filme apresenta dois defeitos importantes. O primeiro deles é a falta de definição em diversos momentos do clímax. Isto já é feito na entre a apresentação de Alice e o conflito (no caso, iniciado na troca de cidade), porém há uma intenção mais clara que seria agilizar o contexto do que fica para trás, não há peso para o telespectador pois não há um conhecimento pleno da vida pregressa de Alice. Não é o caso do final, que apresentando tramas, sub-tramas e nuances, termina um tanto mais vazio do que quando começou, numa sensação que houve pouco a ser desenvolvido. Apenas mostrado, sem um acompanhamento à discussão. Tudo é rápido, sem o escopo necessário para se falar do que é mostrado. Por exemplo, o cyber-bullying é um tema atualíssimo e importante. Com o devido acontecimento que o desencadeia, tão rápido quanto começa, passa. Isso acontece em diversos outros momentos, como preconceito (o implícito e o descarado), homofobia, transfobia, isolamentos e a sensação de desencaixe na sociedade. Sim, mostrar é importante, mas a impressão que permanece é que apenas as escolhas individuais têm consequências coletivas. Já as demonstrações públicas reprováveis, estas sim, são coroadas com o esquecimento. Dentro de um filme que fala do micromundo de uma menina trans que bate de frente com um extremismo moralmente perigoso e aceitável por muitos, é estranho que a decisão do roteiro (ou da decupagem) tenha sido ignorá-las.

O segundo, e talvez o pior defeito que a história montada por Luiz Bertazzo apresenta, seja atraso no timing que as mensagens – que são boas – chegam. Alice passa por três situações extremamente complicadas e traumatizantes por todo o Conflito, mas a sororidade só chega ao fim do Clímax. Vá lá, antes tarde do que nunca, mas o jargão “mexeu com uma, mexeu com todas”, parece hipócrita já que ele acontece apenas depois de um homofóbico tentar estragar a festa da menina elitista. E sim, o elitismo é figura constante no filme. Seria um defeito? Provavelmente não, mas quando você coloca personagens que se declaram contra patriarcado, machismo, privilégios e o homem com seu lugar de fala, pesa vê-las se aproveitando do poder aquisitivo do pai de uma garota cis ou do pai de uma garota trans (Por isso, também privilegiada). Então, das duas, uma: Ou Bertazzo quis mostrar sem alardes que a hipocrisia existe em todas as esferas – e que isso é culturalmente intrínseco –, inclusive naquelas que se entendem como resistência, ou temos uma falha no discurso no filme. Parte de mim quer acreditar piamente na primeira teoria, mas a prática do roteiro me faz pensar na segunda. Deixo a cada um que tire suas conclusões sobre o assunto ao ver o longa já que este ponto do privilégio não é o foco principal da obra.   

Mas a trama tem seus pontos altos também. Ao não tornar conceitos religiosos estigmatizados através dos takes e retakes do rosto de uma santa da escola, o filme acena à tolerância e na necessidade de discordâncias respeitosas. A aceitação é sim possível, mesmo numa sociedade difícil e complicada. Os elementos visuais também são atrativos. Há alguns momentos de “ScottPilgrinização” com palavras aparecendo na tela, sons visuais e conversas ágeis. Ao trazer Alice para um mundo aberto, falar da descoberta do corpo ou do tucking (técnica de colocar o pênis para trás, entre as pernas, escondendo o volume), fica agradavelmente natural a um público que quer informação, porém, instituindo-se de entretenimento conjuntamente. Há um sentimentalismo agradável em certas inter-relações que são apresentadas. A maneira que Alice vai se tornando cola de certas pessoas até que se tornem um grupo é divertido, ainda que nas entrelinhas. Evidentemente, a protagonista precisa desta montagem no filme para que tenha devida importância, mas como a atriz Anne Celestino (Alice) é carismática (falo dela mais abaixo) no papel, faz todo sentido que isso transpareça ao longo da história.

O ponto que mais me agradou é que a transexualidade de Alice é normatizada, como deveria ser. Cada um é o que é e pronto, aceite-se isso ou não. E se há quem ainda não compreenda um pouco sobre direitos individuais, a preocupação juvenil sobre sexo ou beijo, o desejo de fazer parte de um grupo... estas coisas são mais importantes simplesmente porque fazem parte da idade. É este desejo de normalidade do filme que o torna despretensioso, colocar todos nós no papel que já tivemos em algum momento da vida e de maneira suave.

Tratando do elenco de apoio, importante citar que todos são atores amadores. São quase todos muito fracos. Apesar disso, há um esforço cênico grande para que eles traduzam em tela aquilo que o roteiro exige. Mesmo assim, eu não posso, quanto papel de crítico, cobrar tais atores e atrizes por se exporem, já que, na minha opinião, a direção assume o risco e que merece a crítica. Emmanuel Rosset, Thaís Schier, Matheus Moura, Gustavo Piaskoski (que já fez um relativo sucesso na Globo) e Katia Horn, infelizmente, não carregam o filme quando necessário. São caricatos e desencaixados, o que piora quando vemos suas importâncias na trama e na vida de Alice, sejam como objetos de paternidade, amizade ou afeto, ou como exacerbação de intolerância. Mas nem tudo é digno de negatividade. Surya Amitrano tem uma química perfeita com Anne Celestino. As duas funcionam muito bem em cena e conseguem surpreender. Surya é expressiva, com uma voz perfeitamente encaixada para falas densas e quando não as tem, usa do olhar como arma que repassa toda a mensagem necessária da personagem para o público. Mesmo com sua finalidade nitidamente secundária, o papel que ela desempenha como Taísa tem conteúdo como alguém que tem mais a dizer do que realmente diz. Outro ponto positivo é o ator Igor Aughusto. Começa caricato, mas ganha profundidade aos poucos. Ele atua bem, dialoga de forma orgânica com a câmera e faz bem o jogo corporal ao passar receio, desconfiança e uma certa mágoa, sempre muito bem colocado em cena.

Depois destes pontos, é importante citar: Há bastante humor dinâmico na maior parte das cenas quando necessário e todas as que funcionam é com a presença de Anne Celestino Mota, a protagonista. É difícil não perceber uma presença forte da atriz. Ela se entrega ao papel usando de variações entre o minimalismo da sensibilidade de ser uma pessoa trans e a instabilidade adolescente típica da idade. Ela me lembra muito Glamour Garcia, que trabalhou em A Dona Do Pedaço, novela da Globo em 2019: com uma latência na capacidade interpretativa, contudo num estado bruto que ainda demanda dilapidação. Definitivamente, se Alice Júnior tem um trunfo, é esta menina, ainda que não seja perfeita. Há alguns problemas de dicção dela que não foram trabalhados devidamente e há momentos que entendê-la por falar baixo demais, ou para dentro demais é difícil, me fazendo voltar o filme duas ou três vezes para ver do que se tratava a fala. Fora isso, ela está bem demais. Fala com o corpo e teve a coragem de fazer, perto do final do filme, uma cena realmente difícil para alguém que, em 2016, estava em processo inicial de transição. Anne tem potencial e isto é nítido. Resta ver se haverá outra oportunidade para ela num mercado que ainda está descobrindo que atrizes trans podem – e devem – protagonizar suas representações e efemeridades ali transpostas.

Isto posto, Alice Júnior é um filme com proposta leve, de fácil absorção, porém com algumas falhas estruturais graves na forma de passar de conteúdo. Funciona para o público geral enquanto pode inspirar meninas trans. Vale muito mais pelas nuances e por Anne Celestino se colocando fora da zona de conforto de maneira plena, fazendo rir, pensar e também emocionar os corações de manteiga de plantão, mas que empaca em Gil Baroni: Um diretor sem grandiosidades, mas com ideias boas. Dentro disto tudo, há sim um caráter informativo bem válido que às vezes funciona bem, outras vezes parece deslocado no macro do intimismo da personagem e das suas dificuldades, mas mesmo assim consegue passar uma mensagem muito pessoal: Entender-se sobre quem é com as pessoas que ama à sua volta num eterno processo de aceitação mútua, mesmo que num mundo complicado, é o que importa. E isso ainda consegue ser propositivo no cinema.

NOTA: 6,9

Então é isso. Espero que tenham gostado. 
Até a próxima.
Saitama de R'lyeh

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