segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Cinescópio #5: O Pentelho

Fazendo um pouco de justiça a um dos filmes mais injustiçados de Jim Carrey.

Título: O Pentelho (The Cable Guy)
Ano: 1997
Roteiro: Lou Holtz Jr.
Direção: Ben Stiller
Elenco: Matthew Broderick, Jim Carrey, Black Jack, Leslie Mann, Ben Stiller e Owen Wilson

Onde assistir: Netflix

O Pentelho, mesmo com esse título português ridículo, (The Cable Guy ou O Cara da TV a Cabo, à livre tradução), é um filme que carece de ser assistido com um pouco mais de atenção. Como eu sei que há muitos que não gostam, ou consideram o longa ruim, decidi fazer uma crítica trazendo um pouco mais dele, que ainda tem o que falar mesmo sendo um filme de 1997.


 CRÍTICA 

À sinopse: Steven Kovacs acabou de se mudar para um apartamento novo depois de um rompimento com sua namorada. Ao conhecer Chip Douglas, ele acaba sendo tragado para um mundo onde a amizade de Chip pode ser uma bênção, ou uma maldição.

CONTERÁ SPOILERS DO FILME. SE NÃO VIU, PARE A LEITURA, VÁ VER E DEPOIS VOLTE AQUI. 

Há muitas coisas que eu preciso dizer sobre este filme. A primeira delas é que ele é subestimado. Não é um filme perfeito, mas está longe de ser apenas um escapismo com as caras e bocas de Jim Carrey interpretando um homem carente de atenção. Há temas realmente relevantes ali e mesmo que sejam tratados de forma até suavizada ou com uma comicidade evidente a maior parte do tempo, acaba trazendo relevância.

Ben Stiller é um diretor com câmera conservadora e que joga no seguro com muitas edições em cena, então eu nem vou perder tempo falando disso porque uma direção operante que não traz nada de novo desde 1997 no que tange enquadramentos. Mas dentro deste comodismo, há um crescendo na tensão trazido pela mensagem que ele escolheu trazer. E é disto que O Pentelho trata: na necessidade de mostrar que vivemos dentro de uma bolha muito particular e que nos vilaniza. Talvez até pior, ao normatizarmos esses deslizes, os apequenamos e engrandecemos nossa capacidade de burlar o que é certo. Stiller divide o filme em três momentos: A comédia, o incômodo (algo que acompanha muito do longa) e ao final, a explosão do ódio e o justiçamento. Praticamente o conhecido 25/50/25 do cinema: 25% de Apresentação, 50% de conflitos e 25% entre Clímax e Desfecho. Na prática, protocolar. 

Eu não sou versado em Ben Stiller, há poucos filmes dele que eu realmente gosto, mas é inegável que aqui existe uma ideia fixa e clara sobre o “o quê”, “onde” e “como” a mensagem é passada e isso, sem muita análise, é bom. Há um nervosismo que analisando é esteticamente problemático, mas compensa pela latência crescente e é limítrofe ao ao tensionar o espectador. Por muito pouco o filme não se transforma de comédia para suspense mediano em vários momentos, mas que a sonoplastia ajuda a segurar com suas músicas que aliviam o clima. Aliás, essa tensão é até bem-vinda, já que apesar de ser comédia, há um pano de fundo muito real: o Stalker.

Falando dos atores principais, vamos lá:

Matthew Broderick, ator que conseguiu trazer o ápice de sua carreira fazendo o papel de um adolescente cabulador de aula e que venceu o sistema ao desafiá-lo (Ferris Bueller em Curtindo A Vida Adoidado), consegue entregar boas interpretações posteriores sempre focando em personagens antônimos que são pessoas normais que não conseguem resolver seus problemas que crescem ao passar do tempo. Posso citar dois, um deles é o papel do Professor Jim McAllister no excelente e provocativo A Eleição (nunca me esquecerei sua lição sobre moral e ética) e no papel de Steven Kovacs, em O Pentelho.

Kovacs é retratado de maneira simplista, à priori. Um americano médio que tem um trabalho ok, uma namorada que deu um tempo na relação, poucos amigos. Broderick entrega um personagem que está enraizado à questões profundas, como por exemplo, ser o porta-voz de uma sociedade apegada à TV, idiocratizada às vantagens e benesses de alguns trocados para conseguir mais apego à TV (“dê 50 dólares ao instalador e você terá TODOS os canais, até os pornográficos”, conselho aceito). E ainda que carregue nas costas a representação de uma discretíssima vulgarização de erros sociais do filme e uma adorável hipocrisia, ele ainda prefere a solidão.


Jim Carrey, no papel de Chip Douglas, abre espaço para a antítese de Kovacs, ou seja, um homem que viu na TV uma obrigação para deixar adultos em paz quando criança, mas que ao crescer teve todo o seu padrão de comportamento amplificado pelos programas que assistia, os ruins principalmente. Ao stalkear os clientes, ele mesmo romantiza isto através do conceito de amizade. Se ele é abusivo, minimiza com brincadeiras. E o mais perigoso: Se ele tem sua amizade negada, automaticamente percebe que a única solução é ser inimigo.

De uma certa maneira, há muitas semelhanças nas infâncias de Kovacs e Chip. E talvez, a partir daí, tenhamos o paralelo mais interessante do filme: O julgamento do famosíssimo Stan Sweet, que matou seu igualmente famosíssimo irmão gêmeo Sam Sweet (ambos são interpretados por Ben Stiller). Há uma construção paulatina de como as tensões entre os irmãos vão tomando forma das tensões entre Chip e Kovacs. Desde as infâncias dos quatro personagens, enraizadas à frente da TV cada qual à sua forma, até mesmo o desfecho, onde apenas um teria que sair vivo depois que o ódio exacerba. Assim, Chip vira Stan, mas ao contrário do que pode se pensar, quem vira Sam não é Steven Kovacs, mas Robin. Robin/Sam precisaria sofrer pelo ódio que Chip/Stan tem de Kovacs/Sociedade, pelos ônus que teve na vida. Veja bem, não há o menor atrito físico real da parte de Chip para Kovacs o filme todo e a única vez que isso acontece, é como na TV: Encenação. O clímax em que há mais um conflito é simplesmente parte do pacote e nem é tão específico assim. Por isso, toda a ameaça de morte, ainda que infantilizada, é transferida para Robin. O que resta para Kovacs, resta a provocação através da tensão.

Não por menos, o final do trio é completamente diferente dos gêmeos. Se a TV não perde tempo em adaptar a história dos dois com um assassinato e um culpado mesmo sem o veredicto definido, Ben Stiller decide humanizar chip como uma vítima dos excessos dos adultos. Stan não seria uma vítima de Hollywood, então? O perdão é uma escolha. Talvez por isso que a sentença no assassinato tenha sido propositadamente interrompida e que ninguém saiba o que realmente aconteceu. Nós perdoaríamos Stan mesmo que fosse inocente? Um julgamento já não é o suficiente para expor negativamente um homem para sempre? Neste ponto, Kovacks e Robin perdoam Chip, que está obviamente longe de encontrar uma redenção, mas como a jornada é de Kovacks e sua namorada, é a atitude deles que importa. É como a sociedade se permitindo ao benefício da dúvida.

Agora vamos aos defeitos do filme de maneira mais apropriada:

Os roteirismos que Lou Holtz Jr colocou no filme são chatos e vazios. Há pelo menos três trechos que suscitam alguns olhares revirados e suspiros desanimados, assim como algumas causas e consequências são sumariamente capadas em prol de uma narrativa que capenga na indecisão de ser realista ou caricatural. A capacidade de Chip Douglas em ser um ilusionista moral também tem seus maus momentos e são bem supervalorizados. É uma questão de ocasião. Ele engana mulheres, velhos e solitários, mas não engana homens jovens e espertos (o que, coincidentemente, não é o caso de Steven Kovacs). Há um pouco de preconceito nisso, fora que tentam transformar o personagem num mestre na arte dissimulação e combate, dando apenas à TV o benefício. Eu até entendo o deboche, já que nos anos 90 havia uma certa rusga entre cinema e canais à cabo, pois o último se apresentou como uma concorrência. Ainda assim, peca-se ao escolher um vilão que sofre entre o cômico e a tensão, por vezes excessiva, de um thriller. Em alguns momentos esses dois extremos se confundem e fica difícil de compreender como uma coisa completa a outra em O Pentelho. Ademais, filmes e séries podem alienar e isso independe do meio do qual passam, mas a metalinguagem de Stiller se arrisca muito suavemente e fica aquém. É raso e preocupado em apontar dedos numa graça que nunca vem. É como uma piada pronta, mas que ninguém se dignifica a contar como acaba. É apenas um ensaio. A TV é apenas uma das vilãs, num mundo onde toda esta mídia tem sua dose de culpa, porém, com uma seletividade específica.

Falei muito de Robin aqui no contexto de simbologia, mas falei muito pouco em Leslie Mann, a atriz que a interpreta. Há uma fraqueza tremenda na maneira que a atriz é posta em cena. Ela é um gatilho, um objeto de catarse e essa falta de profundidade é muito clara. Apesar deste ter sido seu terceiro filme, é impossível negar que ainda lhe faltava dilapidação no talento. Todos eram novos e se arriscaram muito em O Pentelho, mas é muito óbvio que ela foi a que menos contribuiu e dependeu muito mais de roteirismos do que o intrínseco para ter importância. Moral da história: Leslie Mann sobra no filme, mas de maneira negativa e errada, praticamente suplementar. Se fosse riscada ou apenas mencionada, o efeito final teria sido o mesmo. O que eu falei sobre ela ser Sam é altamente transferível para Broderick, caso ela não estivesse no filme. Mas a verdade é que Sam, o gêmeo assassinado, é um personagem aparentemente gay e, sejamos justos, colocar Jim Carrey, estourando nos anos 90, sendo a hipérbole de uma hipotética tensão homoerótica com Matthew Broderick, seria muito pouco aceito pelo público da época.


Jim Carrey também está com seus maneirismos de stand up canadenses à flor da pele, o que pesa em diversos momentos e pesam para o lado errado. Exagerado em momentos errados, inclusive nos ameaçadores. Chega a ser incrível como o personagem convence os outros de sua bondade sendo tão... ele. Aliás, nunca pensei que o jargão de Carrey “Alrighty Then” (que no Brasil ficou dublado como “Está bem, então” ou "Então tá, então") tivesse envelhecido tão mal. É um daqueles fanservices que se tornam insuportáveis com o passar do tempo e vejo como envelheceu mal. Contando com O Pentelho, há pelo mens mais três filmes que me recordo dele usando essa frase que só serve pra gente dizer “Ei, olha que legal! O Chip Douglas falou a mesma coisa que o Stanley Ipkiss que diz, como o Ace Ventura também falava”. Não impressionava naquela época, agora então, nem sob decreto. Causa apenas um sorrisinho qualquer.

Já que falei de ator que só cresceu na vida, cabe uma menção pouco honrosa a Jack Black, que passa apagado mesmo quando a trama lhe concede alguma importância. É um personagem não muito definido. Ele parece ser jornalista, mas parece ser qualquer outra coisa, que parece ser o Jack Black. Apesar de gostar muito do ator em outras produções posteriores como King Kong, O Amor Não Tira Férias e O Amor É Cego, é inegável que a maioria das vezes é apenas ele interpretando a si mesmo. E aqui não é diferente. Aliás, fica aqui uma pequena recomendação que poucos conhecem: Jack Black participou de um episódio de Arquivo X e que tive a honra de assistir nos anos 90. Não vou falar mais nada, mas posso garantir que ele foi muito bem, mesmo em início de carreira. Procurem se tiver interesse e tirem suas próprias conclusões.


Isto posto, O Pentelho é um filme imperfeito, mas que carrega uma acidez prazerosa. Tenso, vai até onde consegue sem mudar seu gênero e apesar de se perder aqui e ali, mantém uma unidade que interfere muito pouco no resultado geral para o espectador. A mensagem é clara, dentro de personagens que flertam com o complexo e que refletem até hoje uma verdade inconveniente. A TV emburrecia nos anos 90 e mais atualmente temos a internet que faz esse papel muito bem. Todo entretenimento massificado é válvula de escape e a canastrice é sempre uma certeza num mundo por vezes ingênuo cheio de Chip Douglas só esperando a chance de cometerem seus pecados. 

NOTA: 6,7

Então é isso, espero que tenham gostado.
Abraços, 
Saitama de R'lyeh

 

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