sábado, 13 de fevereiro de 2021

Saitama Critica #19: Solomon Kane - A Saga Completa


 “Nem só de Conan viverá o homem”, dizia o ditado. Pois bem. Vamos então falar de uma obra anterior ao Cimério, feita por Robert E. Howard e que tem um peso diferente feita pelo escritor: Solomon Kane.

 🗡EDIÇÃO FÍSICA🗡

Publicada em 2015 pela Editora Évora, pelo selo Generale, Solomon Kane – A Saga Completa conta com 242 páginas, capa cartonada e paperwhite.

O livro contém uma introdução por Alexandre Callari (que você conhece da minha crítica do A Floresta das árvores Retorcidas), 9 contos, duas cartas – uma para H.P. Lovecraft, amigo de Howard, em que o pai de Bob conta do falecimento do filho e outra do próprio Robert, escrita um mês antes de sua morte. Ambas as cartas conversam entre si e jogam um pouco de luz sobre a morte do autor, que se matou em 1936. E para finalizar, há duas páginas falando sobre o fracassado filme do personagem lançado em 2009, que honestamente, não faz a menor diferença você ler ou não.

Sem grandes erros ortográficos, apenas uma ou outra falta de vírgula. O erro mais grave, mas sem problemas para a leitura, é um conto cronologicamente fora do lugar, porém demonstrarei isso já já para ficar mais didático. 

🗡CRÍTICA🗡

O livro não tem sinopse, já que se trata de todos os 9 contos do personagem escritos por Robert E. Howard entre os anos de 1928 e 1932 (e mais dois contos post-mortem publicados em 1968). Basicamente, Solomon Kane é um homem que anda pelo mundo nos idos do final do século XIX e início do século XX caçando monstros, fantasmas e lutando contra homens sem escrúpulos. Munido apenas de duas pistolas, de seu florete e uma fé inabalavel, Kane é o homem do bem diante do mal.

Os contos que o livro traz estão em ordem de publicação e são os seguintes:

Sombras Vermelhas (1928)

As Caveiras nas Estrelas (1929)

O Chacoalhar de Ossos (1929)

A Lua das Caveiras (1930)

As Colinas dos Mortos (1932)

Passos Interiores (1931) - Aí o erro da editora que citei algumas linhas acima

Asas da Noite (1932)

A Mão Direita do Destino (1968)

A Chama Azul da Vingança (1968)

Dada a complexidade de Solomon Kane tanto em suas histórias como um todo com o psicológico do personagem, vou começar devagar na crítica, falando de seu entorno até chegar ao protagonista. Vai valer a pena, acho.


Antes de qualquer coisa, toda obra anterior a 1950, ao menos na minha visão, precisa ser avaliada com um olhar sem peso do pseudo-pós-contemporâneo que muitos usam para criticar obras do passado. Elas, de muitas formas, foram a base para muitas coisas que se popularizaram anos depois. No caso de Solomon Kane, o que Robert E. Howard faz é um ensaio do que viria a ser, o que humildemente considero, um refinamento, e expansão, do gênero Espada & Feitiçaria que iniciou com Lord Dunsany com seu livro The Gods of Pegãna de 1905.

Portanto, se falta a Howard elementos fantásticos como papel imersivo a cenários de universos alegres como O Hobbit e Crônicas de Nárnia, sobra o gótico que faz o clima macabro se sobressair nos escritos sobre Solomon Kane. Esta mesma ambientação é traduzida em forma de florestas assombradas, cidades perdidas com povos estranhos, aldeias abandonas e afins. Ao colocar nestes ambientes a fantasia, o caminho se torna automático não apenas para que existam boas possibilidades do fantástico como força da natureza, mas como ele se torna inexplicável e de certa forma, ainda mais assustador. Aqui, mais do que nunca, vale a máxima popularizada por Stan Lee e Jack Kirby com a frase, mas que iniciou aqui de forma instintiva: “Temer aquilo que não compreende”.

E assusta? Sim. O gótico que traz um certo pavor flerta como terror e o terror, quando não se vale apenas ao susto e a tensão, abraça a violência gráfica. Nos contos de Solomon Kane o que não falta são ossos quebrando, cabeças decepadas, corpos rasgados e torturados, para o período 20/30, é algo que impressiona. Isto não é gratuito e faz parte do modus operandi do autor dentro do contexto de que o mal das histórias não é apenas ameaçador, ele, de fato, cumpre com precisão cirúrgica a promessa de destruição, morte e caos.

Então, não é exagero da parte de Howard pesar a mão nisto. Particularmente tive um certo medo de ver o que ele poderia fazer em outras histórias fora de Conan, já que em Rosto de Caveira, filhos da noite e outros contos ele erra na ambientação e nos terrores que são bem fracos. Ainda que seja uma consequência de seu tempo, não consigo considerar este livro em específico como algo que mereça atenção justamente pela sua tecnicalidade pouco inspirada.



Falado sobre esta parte, é importante avaliar a metodologia textual de Solomon Kane. Narrativamente ele é simples e detém algumas boas nuances da época, mesmo que suavemente formulaico. Claro que há boas diferenciações entre uma trama e outra, o que mostra que Howard se preocupava em dar uma experiência diferente a cada conto, mas sempre com semelhanças entre si que permitia uma uniformidade. A dinâmica funciona bem e não há defeitos nisso. Apesar de haver um certo estranhamento com o primeiro conto, afinal, é uma leitura diferenciada, o autor não demora a se situar e encontrar o tom fácil e de semiótica simples. É incrível como cada palavra é usada em um lugar exato para facilitar o trabalho para o leitor, que se sente acolhido pelas escolhas de Bob.   

Em contrapartida, o autor se vale de longas descrições, mas que conseguem ser bem distribuídas em cada conto, mas esse ponto tem mais dificuldades em A Lua da Caveira, por ser a história mais longa do livro e com diversas localidades, Howard tenha mais necessidade em partir para os detalhamentos. Não é algo que incomode tanto, mas é possível ver que uma vez ou outras essas situações são usadas como um artifício para que ele possa enriquecer a história, por mais que não sejam sempre eficazes. Não é uma linguagem desprovida de vícios e cacoetes, algo que Bob carregou consigo durante toda a vida literária, porém não macula o todo e mantém bem a uniformidade.

Prosseguindo na parte técnica, o Narrador-Onisciente não é apenas um transmissor de informações, mas também um opinativo sobre o próprio Howard diante de certas coisas como o papel da mulher nas tramas, altamente diminuído e o racismo escancarado com frequência ao leitor. Já que toquei no racismo, é importante lembrar que esta era a tônica, inclusive institucionalizada e plastificada pela mídia naquele período. Aceitável? Jamais, mas como falei acima, dentro do contexto histórico, é permeável. Ainda que seja chocante ver que Solomon Kane carregava racismo em si, mas acima de tudo com seletividade, já que, quando convinha, ele aceitava dividir poder “De Satã” de um africano.

Já que comecei a falar do protagonista, há muito da sua complexidade destrinchada no livro, porém não em didática mas sim peças de um quebra-cabeça maior do que o que é realmente mostrado. Howard deixa o leitor livre para imaginar, com alguma substância, de onde Solomon se origina e qual é a finalidade da vida que leva. E ainda que o narrador o chame constantemente de puritano, há poucas provas que este mesmo puritanismo seja referência de alguma bondade, ainda que eventualmente se envolva de alguma inocência. Ademais, xenofobia, e intolerância eram algumas das problemáticas de Solomon, porém bem aproximado da sua construção como personagem e não apenas algum tipo de ranço social. Isto traz à tona uma questão relevante, que é trazer ao meio a discussão de quanto personagens simpáticos, porém condenáveis, conseguem ser porta-vozes de uma moralidade num mundo onde há coisas piores do que caráter problemático.

Talvez isto se deva ao fato de que, à sua maneira, onde magia, maldição, monstros estranhos e seres alados e cruéis tornem o universo particular do protagonista seja quase distópico com um terror permanente e disfuncional de todo o resto da sociedade da época. É impossível dissociar o personagem das bizarrices, mesmo que ele, em algumas vezes, esteja no papel apenas de testemunhar o horror ao invés de combatê-lo. Solomon Kane, muitas vezes, soa ermitão devido às suas escolhas e isto reflete diretamente na narrativa de Robert E. Howard ao torná-lo um protagonista particularmente isolado e teocrata, soando até mesmo estoico, que de uma maneira extremamente primitiva, essas duas últimas coisas são bem aproximadas. Curiosamente, depois disto tudo o que escrevi, é interessante dizer que Howard era ateu, provando que ele arriscava personagens muito diferentes de sua psique. O cristianismo, aliás, é um fator fundamental para o caráter impresso aqui, incluindo o extremismo religioso.

Isso reflete, obviamente, nesse proselitismo devoto de Kane que, curiosamente, dá espaço para uma eventual bondade. Não apenas agrada ver essas constantes dualidades como dá um certo prazer vê-lo entrar em alguns conflitos “morais” interessantes, como uma improvável amizade forjada a fórceps com um africano chamado N’longa. O cristianismo do protagonista até tem uma certa área de conflito com a magia do feiticeiro, mas ele mesmo acaba aceitando devido à certas facilidades e vantagens que existem nesse laço. Aliás, N’longa acaba se tornando uma figura recorrente mesmo que indiretamente na trama em alguns contos, mas apesar de ser estigmatizado como todos os outros personagens de outras etnias, tem uma participação mais efetiva.

Portanto, ao falar de personagens estigmatizados, entro na área mais mascarada do personagem que é a sua xenofobia. Toda e qualquer outra etnia encontrada, seja pelo próprio protagonista ou pelo narrador, subsiste numa inferioridade hipotética declarada. Não são poucas as vezes que Kane vende-se como um homem com um senso de superioridade por ser inglês ou por considerar sua terra moralmente melhor do que outros lugares. E a construção dos males em seus contos deixa isso claro ao permitir que as monstruosidades sobrenaturais aconteçam em estradas, florestas, aldeias, estaleiros e lugares mais afastados. Porém é na Inglaterra, justamente em seu último conto, em que o mal é apenas humano, uma questão moral, por assim dizer. Ou seja: No contexto narrativo de Howard o que existe é o mal em torno e que forja Solomon Kane a ser como é quase, mas é em seu país de origem que é possível lutar com um mal palpável, normal. Como se apenas lá esses seres estranhos e ofensivos à existência não pudessem entrar.

E como falei das histórias, cabem algumas considerações. Como Solomon Kane vem antes de Conan, sob muitos aspectos algumas de suas histórias são pequenos ensaios do que o Cimério se tornaria. É provável que ao terminar o livro, seja reconhecível alguns elementos estéticos e narrativos de A Torre do Elefante, A Cidadela Escarlate, O Colosso Negro, A Rainha da Costa Negra e Os Profetas do Círculo Negro e O Estranho de Preto. Evidentemente estes pontos são absorvidos de forma pontual, mas ainda assim é perceptível. Em A Lua da Caveira, talvez seja o que mais contenha essas características da Era HIboriana, em Sombras Vermelhas, As Colinas dos Mortos, Asas da Noite, A Mão Direita do Destino e A Chama Azul da Vingança podem ser considerados ricos modelos para o que viria a ser o mundo de Conan. É incrível ver essas nuances depois de todos esses anos, ainda mais numa época em que Robert E. Howard estava um pouco mais cru e instintivo na escrita, porém sem perder a mão da escrita criativa.

Isto posto, Solomon Kane – A Saga Completa é um livro sagaz, com pouquíssimas falhas e que serve de base para muito do que veio depois, inclusive após a morte de Robert Ervin Howard. É plenamente possível ver muito de Solomon Kane em diversos heróis como Dante (Devil May Cry), Gerald de Rívia (The Witcher), John Constantine (Hellblazer), Justiceiro, dentre outros. Solomon é um personagem rico, complexo, condenável, mas acima de tudo, tentando fazer o certo entre os próprios tropeços. Isto o enriquece num período em que as nuances engatinhavam em determinados nichos literários e teve sua importância em todo o potencial posterior. Não apenas é uma leitura ágil como se renova a cada novo conto. Solomon Kane precisa, acima de tudo, ser lido no contexto de um período onde a moralidade era diferente e algumas concessões necessitam ser feitas como a própria tolerância que o livro se nega a ter. Sem perder a experiência da obra em si, mas sentindo o grande prazer do escritor por adentrar na estranheza e no horror. Por isso, entre momentos questionáveis e acertos e uma ética tão instransponível quanto sua criação, este prossegue sendo Bob Cano Duplo com sua mira impecável.

NOTA: 9,5

Então é isto. 
Espero que tenham gostado. 
Abraços e boas leituras,
Saitama de R'lyeh

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