sábado, 8 de maio de 2021

Cinescópio #8: A Vida Marinha Com Steve Zissou

Direção: Wes Anderson
Fotografia: Robert D. Yeoman
Roteiro: Wes Anderson, Noah Baumbach
Elenco: Bill Murray, Owen Wilson, Angelica Houston, Jeff Glodblum, Cate Blanchett, Willem Dafoe, Noah Baumbach, Seu Jorge.

Habitualmente, à sinopse: Steve Zissou é um oceanógrafo famoso que teve seu melhor amigo devorado por algo que ele acredita ser uma espécie desconhecida de tubarão. Tendo apenas ele visto o animal, sofrendo da descrença do público e da própria tripulação, ele embarca na caçada (e vingança) ao que chama de “Tubarão-Jaguar” enquanto vê seu casamento com Eleanor afundar, uma jornalista cética ao seu trabalho fazendo perguntas incômodas, ao mesmo tempo que descobre a possibilidade de ter um filho já adulto, chamado Ned.

A Vida Marinha Com Steve Zissou é um filme que me foi apresentado muitos anos atrás. O tom da capa era colorido e de cores vivas, que dividiam espaço com personagens apáticos, o que não era apenas contrastante como também se complementava. Ali, pela primeira vez na vida, experimentei pela primeira vez a sensação de entrar em contato com Wes Anderson e suas metodologias diferenciadas.

Pela primeira vez, não vou falar de aspectos técnicos com profundidade. Wes Anderson sempre fez isso bem e aqui não é diferente. Mas citarei rapidamente os elementos visuais para melhor apreciação:

Câmeras centralizadas constantemente;
 Cores e suas habituais mensagens: Azul - apatia, Amarelo - mudança, Marrom e dourado – estranhamento, Vermelho - falsidade intelectual ou morte;
✔ Planos Abertos para colocar os personagens em diminuições existenciais;
 Planos Sequências para trivialidades;
 Personagens comuns, mas retratados de maneira inverídica.

Dito isto, vou me ater, majoritariamente, aos aspectos filosóficos e estéticos da obra, porque acredito que a esta altura da carreira do diretor, seja mais importante avaliar sua autoralidade e como ela conversa na sua construção quanto filme do que validar, ou não, sua técnica.

Não que o longa seja complexo em sua história e narrativa, longe disso, e é possível até que quem veja Bill Murray como uma figura representante do pop se agracie do longa apenas pela sua presença. Mas gosto de dizer que, para além de seu ator principal, A Vida Marinha... soa elitista e de fato o é. A riqueza é ostentada em muitos momentos: ilhas suntuosas com uma elegância galesa, mostras de cinema num anfiteatro com todos trajando seus smokings e vestidos pomposos, barcos lustrosos, comendas, os takes em pinturas em tela grande, que parecem custar muito caro e claro, as já conhecidas centralizações de câmera de Anderson e suas cores representativas. Então, não vamos ter parquinho de diversões aqui e nem macacos gigantes, muito menos o olhar dessaturado de um diretor melancólico com ideal de grandeza fútil ou frases de efeito a cada cinco minutos. Este é um filme que tem a intenção primária de te causar um tanto de tédio.

Para tanto, Anderson apela, mais uma vez, aos seus conhecidos diálogos mecânicos e artificiais. O tom trivial do que é dito, e muitas vezes feito, em tela, é causal, ou seja: estende causa e efeito diante do cinema como objeto de reflexo, mas acima de tudo, como autodeboche. O diretor tem a única intenção de brincar com os conceitos arraigados em seu trabalho por outros, como críticos e fãs. Parece complicado, deixe-me explicar melhor: A Vida Marinha Com Steve Zissou parodia as cargas artísticas de Wes Anderson, adquiridas com o passar dos anos e o ar intelectual que foi dado aos seus filmes por outros. É um filme sem medo de rir de si próprio, para ser ainda mais simplório na colocação.

Mas veja bem, rir de si mesmo implica piada. Porém há um detalhe: Rir de si mesmo, muitas vezes, é processo interno. Wes faz de suas piadas algo que não é engraçado para todos. Muitas vezes usando de tensão para isso. Você pode não ver a ironia, mas lá está ela, quando Steve Zissou, tomado pelo cinismo, aponta uma arma para uma repórter grávida durante uma entrevista, enquanto uma baleia orca dança ao fundo, num aquário. Ou quando uma estagiária adepta ao topless, com cara de menor de idade, consegue ser mais madura do que o próprio Zissou, um homem com mais de 52 anos que vive de seu egocentrismo. Já falei esses dias que me disseram que nem tudo precisa ser assistido com olhos de cinema francês. Pois bem, eis aí um cinema francês (isto é uma ironia: O filme nem é francês e Wes Anderson é americano) em suas camadas.

“Ok, lEaNDrO, eStE nÃo é MEu tIPo dE fILmE. QUeRo uM PoUcO De aÇÃo.”, você, jovem dinâmico adepto dos filmes Marvel, suas séries e Warner com a DC, me diz. Que tal, então, duas belíssimas cenas de tiroteio, uma delas ao som de Search and Destroy da banda The Stooges, dirigidas com câmera nervosa onde os tiros são nitidamente de festim? Onde os tiros nunca, jamais, pegam na figura de repente mítica do protagonista, suavemente pançudinho, barba e cabelo ralo, que age feito Steven Seagal enquanto se enraivece por ver sua tripulação ameaçada e ferida por piratas? Não é ainda mais incrível se a culpa dos piratas invadirem o barco ser exclusivamente de Zissou e seu péssimo hábito de passar dos limites? Quer mais ação do que isso? Lamento, é a vida real. Você precisa entender que estalares de dedos ou Novos Deuses com seus raios gama só vão ter peso permanente quando a gente se recusa a crescer um pouco.

Wes Anderson é propositadamente artificial e com isto conta a sua história. Ele precisa que tudo seja inverossímil e assim, de maneira escalonada nas sub-tramas e na narrativa principal, cria luz sobre um dos pontos mais importantes da história: Até onde se vai para manter a relevância.

Para tal, eu poderia falar de Cate Blanchett no papel da jornalista Jane Winslett-Richardson, Jeff Goldblum no papel do Oceanógrafo pop-star Alistair Hannessey, Owen Wilson como Ned “Kingsley” Plimpton, Willem Dafoe como Klaus ou até mesmo na eternamente esplêndida Anjelica Houston como Eleanor Zissou. Todos carregam belissimamente seus personagens, dando sempre mais do que realmente aparentam e lutando para terem vida própria durante a história. Mas aí é a grande sacada do longa. Steve Zissou é ciumento e Wes Anderson não tem o menor interesse que o Oceanógrafo permita que qualquer outro fique acima de sua jornada. O diretor concatena muito bem as nuances artificiais de Zissou com seus rompantes deixando o telespectador atento compreender que seu caminho utiliza os personagens-escadas, aqueles que estão ali, narrativamente, para exaltar a figura do protagonista. Mas isto só ocorre com sinal trocado e Steve Zissou é lembrado o tempo todo do quão irrelevante se torna a cada momento, ou seja, os Escadas apenas o diminuem. E isto causa uma divertida consequência: Ao crescer os absurdos da história, Wes também cresce em Zissou o desespero de estar à frente disto. Não por menos, é raro quando um personagem faz a trama andar. Todos eles, de alguma forma, reverberam um aspecto do protagonista: controlador, espasmodicamente manipulador, vingativo, desconhecedor da própria profissão, indiferente e, acima disto tudo, extremamente despreparado.

É preciso, por isso, elogiar profundamente Bill Murray aqui. Até para criar um perfil frio do personagem, é preciso técnica. Wes dirige bem seus atores, mas Murray tem talento natural para soar egoísta e prepotente. Os olhares secos para a câmera são um bom exemplo disso: informando sempre de forma seca sobre suas aventuras e destinos, ele repassa o cansaço de não saber mais como voltar aos tempos áureos. Isso fica nítido quando ele pede para um colecionador falsificar suas assinaturas de pôsteres onde, mais uma vez, suas aventuras são retratadas de maneiras falsas. Anderson e Murray conseguem de forma primordial provar que Zissou não quer mais ser Zissou, então o que resta? Sê-lo uma última vez e partir para matar o tubarão em extinção que devorou seu melhor amigo. Aliás, o senso de falsidade é tão grande que o interno do Belafonte, barco de Zissou, é nitidamente cenográfico e montado com recortes como um barco de perfil, todo em madeira, sobre um aquário com dois golfinhos, simbolizando o mar. É uma boa relação com o anfiteatro que comentei mais acima. Se Zissou diz que “é tudo uma aventura”, que seja, a certa medida, uma mentira escancarada, com peixes em stop-motion e com direito à referência de Cavalo Marinho Crayon (ou giz de cera, em inglês) todo animado em cores vivíssimas, como que feitos por uma criança. Não por menos uma criança dá o exemplar para Zissou. Metalinguagem. Isto é apenas um filme e Wes Anderson vai te lembrar o tempo todo. Curiosamente, esta lembrança não te imerge do longa-metragem, mas sim consegue entregar um senso de estudo sobre o quanto o sucesso vicia e quanto muda uma pessoa, tornando-a algo artificial. Não há vislumbres de quem era Steve Zissou antes da fama e isso não importa. De algumas maneiras bem claras, ele se lamenta não necessariamente por isso, mas por perder a sua essência aventureira e relevância. Não há culpa, sequer remorso. Há apenas a busca e tão futilmente quanto começa, ela termina. Pode parecer frustrante, mas faz sentido quando analisada a persona do protagonista já que todos os outros personagens são sujeitos com noção responsável de quem se compreende e Zissou é apenas uma criatura a qual mesmo na velhice não encontrou a lapidação ideal.

Mas Steve Zissou não é apenas instinto capado de humanidade. A relação com seu filho Ned, por mais disfuncional que seja, tem momentos tocantes. Seu poliamor sutil, mas percebido, numa relação desgastada com a esposa diz muito também. Mas o grande ponto de Zissou é mesmo sua relação com Eleanor, a esposa. Ambos se amam, mas os anos juntos o torna naturalmente afastado. Não há toque entre o casal em praticamente o longa todo, com exceção de dois pequenos momentos, que refletem bem os sentimentos de ambos nos momentos específicos. Curiosamente, mesmo amando-a, qualquer tipo de misantropia que ele carregue é fruto muito mais de si mesmo do que dos outros. Zissou despreza a sua mulher como despreza tantos outros, vendo-os muito mais como meios para seu destino desejado, de acordo com o momento.

Este é um filme realmente muito interessante, mas olhando friamente para ele nem tudo são flores.

Willem Dafoe tem um personagem superestimado como o alemão Klaus, mas supervalorizado dentro da trama. Mas ele é Willem Dafoe, então Wes Anderson o coloca num patamar acima do qual, narrativamente, pudesse fazer sentido. Não é algo que incomode o tempo todo, mas é visível que existe uma predileção, até pelo peso do nome do ator. Existe um pouco de sarro em colocar um americano para interpretar um alemão adepto a hipérboles, mas não funciona também quanto poderia.

Mas o maior problema que Anderson cria é escalar Seu Jorge para o papel de Pelé Dos Santos (obviamente os fãs de futebol adorarão a referência). Não que o personagem seja bom, aliás, não há nada que se aproveite dele. Com não mais do que três falas curtas, caricato em alguns trejeitos e extremamente desnecessário dentro da trama. Já o Seu Jorge está lá apenas como Seu Jorge. Ele canta com voz e violão, uma nítida homenagem de Wes para a Bossa Nova, mas permitindo que o cantor pegue músicas de David Bowie e as destrua, em português, obviamente. Astronauta de Mármore, eternizada de maneira sublime pela banda gaúcha Nenhum de Nós (a única que respeita, etimologicamente, a letra original no filme todo), está lá, mas é tocada por pouquíssimo tempo e é a única que vale ser ouvida. Rock N’ Roll Suicide, Five Years, Oh! You Pretty Things entre outras são um atentado ao ouvido com suas versões abrasileiradas. Todo o cunho original se perde, inclusive quando ele canta Life On Mars?, que criticava pesadamente a sociedade, a futilidade do dinheiro e suas relações tristes. Mas aqui, Seu Jorge retira o refrão:

Sailors fighting in the dance hall
Oh man, look at those cavemen go
It's the freakiest show
Take a look at the lawman
Beating up the wrong guy
Oh man, wonder if he'll ever know
He's in the best selling show
Is there life on Mars?

E substitui por:

Então, vem cá me dá a sua língua
Então vem, eu quero abraçar você
Seu poder vem do sol
Minha medida
Então vem, vamos viver a vida
Então vem, senão eu vou perder quem sou
Vou querer me mudar para uma life on mars

Veja bem, ao comparar o senso de riqueza de trecho original da mesma música como: “Mas o filme é um tédio deprimente / Porque eu o escrevi dez vezes ou mais / Está prestes a ser escrito de novo / Enquanto eu peço que você se concentre”, o que por si só já é uma metáfora ao o filme representa superfluamente e traz intencionalmente, apresentar algo como Quantos sonhos já destruí / E deixei escapar das mãos / Se o futuro assim permitir / Não pretendo viver em vãoreduz todo e qualquer mensagem e seu escopo. Passou pela aprovação de Anderson? Provavelmente sim, mas ainda assim, é terrivelmente fora do pragmatismo artístico que o longa apresenta em toda a sua concepção já que tanto Zissou quanto o diretor não se apresentam com esta intenção. Poucas vezes vi o termo "para inglês ver" de forma tão literal. 

Mas não me forcem a prosseguir com as comparações. São terríveis. Isso que nem falei sobre a horrenda versão de Queen Bitch, que Seu Jorge apresenta logo após a original acabar de ser tocada. Para meu desespero, feita em violão quase que integralmente. Sempre senti falta do Seu Jorge da época do Farofa Carioca: inventivo, raçudo, trazendo simpatia à realidade brasileira e tocando feridas. Mas é fato que mainstream estraga pessoas e isto é percebido de maneira grotesca aqui. Sei que isso soa quase mesura para quem não é brasileiro, afinal, é alguém homenageando, em sua língua, um ícone do Pop-Rock, então, obviamente, espere visões diferentes de outras pessoas sobre isso, inclusive sobre os que acham o cantor a epítome de alguma coisa com seu repertório dos últimos anos. Mas para a nossa sorte, as versões em português de Seu Jorge para David Bowie são rápidas e nitidamente servem apenas para manter a moral da equipe lá em cima. Até existe, na internet, todas as versões na íntegra, mas não farei isso com vocês. Não é da minha índole.

Porém, tenho sentimentos conflitantes com isso ainda. Se a intenção de Wes Anderson é deturpar, não seria Seu Jorge uma parte desta piada da qual ninguém precisa necessariamente achar graça? Por mais que eu tenha todas as críticas possíveis quanto ao Seu Jorge neste filme, é inegável que a intenção de Anderson existiu e mesmo que não tenha funcionado como deveria para mim, não afeta o andamento do filme como objeto artístico. Ruim? Com certeza. Torna o filme ruim ou problemático por causa disso? Não.

Pelo menos as versões originais das músicas de Bowie estão lá e com funções narrativas como causar emoção, reflexão e um pouco de tristeza, tudo, como sempre, relacionado ao personagem principal, o que carrega Steve Zissou com uma indulgência suavemente lírica.

Atualização 22/2/2022 - Depois de quase 10 meses desse trecho escrito na crítica sobre a presença das versões brasileiras de David Bowie, importante ressaltar que mudei suavemente de ideia. Continuam versões ruins e empobrecidas das músicas originais e com obviedades demais sobre detalhes do filme, mas dentro do contexto da história, fazem sentido. 

Isto posto, A Vida Marinha Com Steve Zissou, prossegue um filme relevante e provocativo sem apelar visualmente para as adultices hoje tão celebradas. Com um começo que testa o espectador, com um desenvolvimento fascinante e de desfecho agridoce, não sente a necessidade de convencer mesmo quase duas décadas depois de ter sido feito (2004) e nem mesmo precisa criar algum tipo de conexão com quem o vê. Ele quer apenas tirar sarro de si mesmo e, quem sabe, mexer um pouco com alguém no processo. E ame-o ou o odeie, ainda traz Bill Murray num papel complexo e um elenco estelar que complementa maravilhosamente bem a “jornada do herói” deturpada e deslumbrada pelo sucesso de outrora. Wes Anderson acerta, de novo, em mostrar a crueza humana através de camadas e da irrealidade, do medo do esquecimento e tentativa de ressignificação.

NOTA: 9,8

Então é isto.
Espero que tenham gostado.
Abraços,
Saitama de R’lyeh.

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