sábado, 26 de março de 2022

Cinescópio #10: Os Mortos Não Morrem


Título:
The Dead Don’t Die
Ano:2019
Direção: Jim Jarmusch
Roteiro: Jim Jarmusch
Elenco: Bill Murray, Adam Driver, Steve Buscemi, Tilda Swinton, Danny Glover, Selena Gomez, Iggy Pop, Tom Waits, Caleb Landry Jones, Sara Driver e Chloë Sevigny
Onde assistir: Netflix

Sinopse: Depois de uma exploração energética mal sucedida nos polos do planeta, os mortos começam a se levantar da tumba e devorar os vivos em Centerville. Cabe a três policiais e uma tanatopraxista manter a ordem na cidade. 

CRÍTICA

Eu não sei vocês, mas quando quero ver um filme, posso até ficar sabendo dos spoilers, mas evito as críticas porque eu percebo que isso me tira da imersão e me faz criar expectativas irreais àquilo que eu realmente posso achar do longa. Foi este hábito que me salvou da chatice da internet neste caso.

Antes de mais nada, é muito importante falarmos de dois pontos: O primeiro é que Jim Jarmusch tem muita história no cinema e já fez de tudo há décadas. A esta altura do campeonato, ele já ganhou o direito de arriscar aqui e ali. E mesmo que ele não tenha linguagem de blockbuster, suas histórias são minimamente reflexivas e a autoralidade narrativa é sempre um alento.

E segundo ponto: Filmes de terror de zumbis, em essência, têm um fundo de crítica social. George A. Romero passou bem isso já no primeiro filme que fez do gênero: A Noite dos Mortos-Vivos, onde, sem uma cena de gore, conseguiu aclimatar o espectador e assustar demonstrando como a sociedade é frágil diante de um mal desconhecido.


E esta mensagem é repassada aqui. A sociedade é deficiente e o mal do homem está no excesso de consumismo e extremismo. Talvez até mesmo sejam autofágicas. Parece óbvio, mas às vezes é importante que o didatismo aconteça em doses homeopáticas. Por isso, com a intenção clara desde o início de seu filme, é que Jarmusch se dedique a dar o toque que diferencie Os Mortos Não Morrem de filmes como Zumbilândia, por exemplo. Se este tenta ser sarcástico, Os Mortos... abraça magistralmente o cinismo. E para isto, ele usa todas as armas a que tem direito.

A começar pelo elenco. A baixa frequência que atuam auxilia a deixar o espectador entorpecido. Nada é dito de maneira direta nos primeiros 30 minutos de filme, com exceção do Ermitão Bob (interpretado por Tom Waits) e suas frases secas. Bill Murray e Adam Driver atuam magistralmente nesta direção mesmo sendo nítido que o diretor dá de ombros para qualquer tipo de engajamento do espectador e procure apontar para o público que se preocupa mais com o desenvolvimento e aclimatação do que com os ávidos por explosão narrativa e cenas de aberturas épicas. Isso se reforça na personagem estranha de sempre excelente Tilda Swinton, tão apática, mas ao mesmo tempo, feliz por estar onde está. São essas camadas que dão o tom de Os Mortos Não Morrem e o charme da produção está em dar uma banana para tudo o que se espera. E nisto, há mérito de Jim Jarmusch: Ele sabe quando brincar com a expectativa criada pelo gênero e causar falsos clímax e quando entregar o que é preciso. Portanto, esta artificialidade é um aspecto importante da trama e a naturalidade soa estranha quando feita. Isto é sentido também nas feridas causadas pelos zumbis: falsas até o osso, mas num período onde realismo de CGI é bom dia, acaba sendo crítico.

Como o primeiro zumbi só aparece depois de 30 minutos de filme, com um Iggy Pop hilário e Sara Driver propositadamente estereotipada, isto só demonstra que a cena do primeiro ataque não está interessada no choque visual, apesar de ter um pouco de sangue e tripas, mas em passar o reforço do tom debochado. Seria fácil evitar um ataque zumbi, mas as personagens simplesmente não conseguem. E por quê? Porque está no roteiro.

Este tom metalinguístico e que faz uma certa quebra de quarta parede indireta estão nas conversas específicas entre Murray e Driver desde o início. Há algo a mais nos diálogos e isso exige paciência do espectador. Mesmo a pergunta “Estamos Improvisando?” é boa para apontar direções sobre as nuances exigidas pelo diretor. O tom é teatral, isto já fica por óbvio na cena da lanchonete onde a sequência música-conversa paralela-diálogo principal acontece. E este apontamento, deliciosamente específico, é usado até seu final.  

Até a maneira cirúrgica com que Jim usa os mesmos takes é bem dosada. Ele varia bem na metodologia e o uso da câmera é inteligente. O diretor sabe quando fechar no personagem e quando dar planos abertos. Ele também sabe quando mostrar e quando virar a câmera. A repulsa é rara, mas funciona quando demonstrada muito mais pelo tom gutural dos mortos-vivos do que por uma urgência do gore. A conversa entre trilha sonora variável e imagem também destoa agradavelmente. Ora ouvimos uma música pesada e ora ouvimos insistentemente Sturgill Simpson com The Dead Don’t Die. Sim, a música tem o mesmo título do filme e isso tem um (bom) motivo bem específico. A fotografia é bem trabalhada. De começo as cores são vivas, depois muda para um pastel suave e, por fim, o esverdeado toma conta. Ciente de que o filme é o produto de seus achismos já batidos sobre o tema - o que por si só não é um pecado - , Jarmusch apela para a sua tecnicalidade como parte importante do espetáculo.

Outra coisa interessantíssima é como Jarmusch gosta de deixar certas coisas nas entrelinhas. O diálogo entre dois personagens que diz “O mundo é perfeito. Valorize os detalhes.” é construída mais do que apenas com tom de voz, mas com olhares sutis, postura, agrados. Outro bom exemplo é como a atmosfera e diálogos sempre apontam para o assunto da morte. Seja pelo falecimento de moradores da cidade, seja pela morte do celular, seja pela repetida frase de que “isto não vai acabar bem”. Por outro lado, o diretor brinca com a obviedade ao mostrar um personagem chamando seus gatos para comerem enquanto vê o noticiário falando sobre o sumiço de animais e a recém-adquirida hostilidade deles. Apesar dessa obviedade que citei, as exposições são bem diluídas entre Ermitão Bob e o noticiário. Então não é um filme que se presta a tratar o espectador como um completo idiota.

                                  

Talvez por tudo o que escrevi parece que o filme é inchado, o que não é o caso. Estou apenas valorizando os detalhes. Apesar de tratar-se com certa indulgência e gostar de dar tapinhas nas próprias costas (algo que todo diretor autoral faz), Jim Jarmusch o faz de maneira consciente e sem medo de assumir este vício. Há diferença entre fazer isso como por se auto parabenizar e fazer isso como parte do processo narrativo do cinismo.

Ainda assim, há pequenas especifidades que incomodam. O núcleo do Centro de Detenção Juvenil parece um pouco deslocado e não agrega, além de não agradar. Honestamente, até seu desfecho soa aberto demais para um filme que precisa dar finitude. Os “Hipster de Cleveland” parecem pouco aproveitados, mesmo divertindo nas poucas aparições e servindo de referências ao que já havia sido feito antes por outros diretores. O discurso final é didático demais e perde a oportunidade de ser um pouco menos expositivo já que o mesmo ficava óbvio durante todo o longa. Apesar de eu elogiar todo o desdém de Jarmusch para fazer este filme, é óbvio que pode desagradar quem acredita no formato engessado do gênero. Ainda assim, não são defeitos que tirem a imersão. São apenas situações específicas negativas.

Então, depois de tudo isto que escrevi, vamos voltar à mensagem do filme: Por mais que soe falarmos de pandemia, na verdade é mais um filme que responde, ainda que indiretamente, ao processo de época ao negacionismo sobre o mal que a exploração ambiental desenfreada faz, inclusive com duas rápidas citações preocupadas em descredibilizar cientistas. Sim, mais um filme feito em 2019 que acabou sendo mais atual do que se imaginava que seria. Apesar de Don’t Look Up construir essa ideia apocalíptica de maneira muito mais realista e urgente, The Dead Don’t Die carrega a intenção de provar muito mais vagarosamente, sobre suas próprias vias, o mal que o homem faz ao homem e como isso acarreta o fim, dependendo de seu ponto de vista.

E ao fim, se falei sobre cinismo neste texto, permitam-me falar de outro elemento usado por Jarmusch em seu clímax e desfecho: O deboche. O final não é uma rendição às suas pretensões, mas sim à sátira, a banana elevada ao cubo. O fim não importa porque há sempre espaço para a piada. Pode não funcionar em sua totalidade, mas consegue ser bem direcionado ao que se propõe desde o início, apesar de exacerbado.

Isto posto, The Dead Don’t Die é um filme divisivo, mas bem intencionado. Tem um elenco bem encaixado, inspirado, e sob a mão agradavelmente pesada do diretor que busca deixar sua marca. Com raros defeitos narrativos, pouco diálogo com o grande público e alguns momentos questionáveis, ainda assim, tem na sua boa execução um dinamismo muito próprio e é um bom exemplo do gênero que consegue simplesmente ser aquilo que é sem grandes dificuldades: Uma peça de teatro que adoraria terminar sob os aplausos efusivos do público. Mas tudo bem se isso não acontecer, desde que você
capte a intenção da obra.

NOTA: 8,9

Então é isso. Abraços, Saitama. 

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