Marcus nunca
gostou muito do seu trabalho e isso era conhecido de todos. Ser faxineiro do
Necrotério da Faculdade de Tordo Maxxuel nunca lhe redeu nada a não ser certo
desdém das pessoas e do assombro dos mais íntimos. Quem, em sã consciência,
trabalharia em um lugar aonde a morte chegaria das mais diversas formas e nunca
de uma forma fácil de ver? Alguns chegavam tortos, outros, pela metade e havia
aqueles que, de tão horrendo os seus estados, vinham dentro de sacos plásticos
grandes.
Não era de admirar que ele nunca mais tenha dado um sorriso depois de entrar naquele serviço e de ter enlouquecido depois de certos acontecimentos que até hoje não têm explicações, a não ser os que ele fala, às vezes de forma mais tranquila, outras vezes de maneira desconexa e desconcertante. Histórias das quais eu documentei por motivo clínico, já que Marcus não foi considerado capaz de viver em sociedade, pelo menos por um tempo. Mesmo Elizabeth Romana, a médica legista responsável pelo necrotério, que também poderia elucidar este caso, nunca foi encontrada depois da noite de 12 de março de 2009. Supôs-se, na época, que ela teria fugido, mas, na casa dela, dias depois, foram encontrados todos os pertences que possuía e seu carro, tão frondoso, estava intacto na garagem. Os habitantes de Foxfire, onde ambos residiam e também era instalado o necrotério, não tardaram em acreditar nas crendices que pipocavam nas ruas. Todo tipo de rumor mais sem sentido surgia em cada canto da cidade, que buscava, ainda que inconscientemente, uma explicação para o que houve. Ninguém além de Marcus, Elizabeth e, possivelmente, eu tem ideia do que houve dentro daquelas paredes que cheiram a morte desde seus alicerces.
É necessário afirmar, desde o início de tais relatos, que tentei durante esses quatro anos em que ele está internado em nossa clínica, criar uma linha do tempo dos acontecimentos. As horas gravadas de conversas foram-me úteis apenas para tentar situar, neste relatório, os devidos momentos de cada acontecimento que tentarei reproduzir para que se façam conhecidos os horrores que Marcus vivenciou nos dias que antecederam a data já mencionada. Sendo reais ou não, são impressionantes pelo grau de realismo absurdo que ele ainda as vive dentro da sua tão fragmentada mente. Os remédios já não bastam para que ele durma em paz, por isso os gritos de horror que ele solta durante a noite nos fizeram aumentar drasticamente a dosagem inicial de sedativos. Não se fez isso tanto pelo paciente, mas sim por causa dos outros que se incitaram com a voz ecoante de Marcus, causando um uníssono perturbador que mais pareciam mantras ecoados por monstros. Tais fatos causaram a saída voluntária de enfermeiros do período noturno e foi um verdadeiro caos contornar a situação até que conseguíssemos trazer a normalidade de volta para os corredores da clínica. Dito isto, creio ser pertinente narrar os eventos que trouxeram o paciente para esta instituição. Esse relatório pessoal será utilizado apenas para futuras referências e não será posto à disposição de ninguém.
Começo com algumas constatações de documentos trazidos até mim na época de seu internamento. Marcus tinha 26 anos e foi admitido no dia 29 de fevereiro. Segundo a papelada, não havia em Marcus, histórico de problemas mentais a ponto de serem recomendados a psiquiatria ou internamento. Dentro das observações que foram feitas nas anotações de sua entrevista de emprego, ele foi até mesmo considerado erudito pelo seu contratante já que não lhe faltavam palavras para sua boa oratória. Esse foi um fato curioso que me saltou aos olhos. Por que um homem com boa conversação se candidatou à vaga de faxineiro? Apesar de o aparente problema parecer mais um ato preconceituoso, o questionamento se deve ao fato de que Marcus havia cursado faculdade de Biologia em Tordo Maxxuel e completado com méritos a ponto de receber duas propostas de empregos meses antes da sua formatura. Estranhamente isso não foi trazido à baila na época de seu internamento e nem mesmo agora os familiares que vêm visitá-lo pensam sobre o assunto. Seria eu o único a analisar isso?
Segundo ele, em um de seus momentos de lucidez, após o segundo dia de trabalho diurno, a Dra. Elizabeth pediu para que ele fosse repassado para o período da noite. Houve um estranhamento do pedido dela por parte do Diretor Hans, do necrotério, já que à noite não era necessária a limpeza com frequência. Ainda assim não foi negado tal pedido, já que ela, como legista noturna, sabia mais do que era pragmático para tais horários. A relação entre Marcus e Elizabeth não foi dos mais auspiciosos desde o início. Se por um lado, ele reclamava de barulhos estranhos que ouvia toda vez que ela se trancava na sala de autópsia, junto com alguns corpos, segundo relatórios encontrados na casa dela, ele era relapso e considerado por ela um tanto “respondão” por se meter no serviço dela. O caso de Marcus fica mais estranho à medida que mergulhamos na relação dos dois. Em várias sessões em que clinicava as conversas com ele, fui surpreendido por momentos em que ele, subitamente, ficava introspectivo enquanto sussurrava o nome dela. Tal comportamento, na maioria das vezes, é fruto de traumas violentos ou de constantes trocas de insultos, mas até onde consegui desenvolver minha relação com Marcus, ficou evidente que eles nunca trocaram muitas palavras.
Segundo o paciente, já no primeiro dia em seu
turno novo, ele ouviu os tais ruídos estranhos na sala de autópsia, onde
parecia que havia algo arranhando a porta que dava acesso ao lado de fora, onde
ele limpava, no momento dos sons. Ao sair da sala, a Dra. Elizabeth estava com
seu jaleco ensanguentado e a marca de da mesma substância que se assemelhava a
uma mão em seu rosto. Ela olhou Marcus, que não disse uma única palavra
enquanto a observava, petrificado. A única recomendação que ela deu, com voz de
propriedade é que deixasse o local onde estava sem limpar, já que o trabalho
dela não havia terminado ainda. Ele respondeu que precisava limpar a sala e ela
deu um grito com ele, proibindo de entrar lá. Marcus sabia que tinha algo de
errado naquela situação, mas o medo de levar o caso adiante era maior do que o
desejo de fazê-la pagar por algo que ele não tinha certeza do que era. Pesava
também o fato dele trabalhar solitariamente com ela. Não existiam testemunhas
que pudessem auxiliar em qualquer retaliação que ela pudesse cometer contra
ele. A sala era hermeticamente fechada, mas mesmo assim, minutos após a saída
dela dali, ele afirmava poder ouvir algo se arrastando por lá. A princípio
Marcus achava que tais acontecimentos seriam apenas sua imaginação, apenas para
me confidenciar, em outras sessões que havia algo demoníaco naquele lugar.
Ele
foi embora do trabalho, naquele dia, com a nítida sensação de estar sendo
observado. Conforme andava pelas ruas da cidade, sentia que alguns olhos
estavam atentos aos seus movimentos. Ele não sentia medo, apenas um incômodo,
que logo dissipou. Ao chegar em casa, Marcus disse não ter conseguido dormir ou
sequer descansar. Cada segundo se tornava angustiante ante as lembranças
ouvidas daquela horrenda sala. Ele estava com medo de voltar ao trabalho, mas
não tinha outra opção. Apesar de Foxfire ser grande, não era muito comum
emprego de sobra por aqui. A recessão ainda era recente, mesmo com a economia
se recuperando mês a mês.
Assim,
na noite seguinte, Marcus estava de volta ao necrotério. O faxineiro que
terminava o turno anterior ao do paciente reclamava que a Dra. Elizabeth havia
chegado mais cedo e não estava de bom humor. Então, perguntou ao funcionário se
havia sido limpada a sala da autópsia e a resposta foi afirmativa. Questionado
sobre o fato de que poderia existir algo de errado dentro daquele lugar, o
outro faxineiro riu, dizendo que estava limpa até demais e que o trabalho havia
sido mais fácil do que esperava. A maioria dos funcionários já saia e Marcus
temia passar pelas mesmas situações da noite passada. Surpreendentemente, a
Dra. Elizabeth estava mais dócil com ele, a ponto de oferecer-lhe uma xícara de
café e perguntar sobre sua vida. Ele respondeu timidamente e ela não se
aprofundou naquelas questões, logo voltando a atenção ao seu trabalho. Marcus
fez o mesmo, sem saber muito que dizer a alguém que nunca havia lhe mostrado
nada mais do que palavras escassas e rudes. Não saber o que fazer estava se
tornando um hábito para ele e isso o deixava incomodado.
A madrugada ia chegando e, segundo o paciente, não houve sinal de situações estranhas até aquele momento na sala de autópsia. Marcus tinha receio de que, a qualquer momento, ser surpreendido com algo fantasmagórico naqueles corredores escuros. Ele assumiu, em vários momentos durante a terapia, que tinha muita vontade de consumir entorpecentes que utilizou com alguns colegas da faculdade. Afirmava que não era usuário frequente, mas que utilizava aquelas substâncias quando não conseguia controlar a ansiedade. Nos exames de sangue feito na clínica, nunca foi encontrado nada que pudesse ir contra a possibilidade dele ser usuário, já que o sangue pode guardar o rastro de qualquer produto por um longo período.
Marcus, naquela noite, fez seu trabalho como sempre. Não havia nada de anormal onde quer que ele limpasse. Ciente de que estava tudo bem, ele pôde relaxar e não pensar mais em qualquer suposição que fosse considerada imprópria. Em apenas um momento houve estranhamento da parte dele, quando, na sala da Dra. Elizabeth, foi ouvido a voz dela discutindo com alguém por telefone. Ela, segundo Marcus, falava baixo para não ser ouvida, mas ríspida o suficiente para não conseguir disfarçar o tom de voz em que dizia que a entrega teria de esperar, pois haviam surgido complicações com alguns mortos. Logo em seguida ela desligou o telefone e ficou um longo tempo em silêncio em seu recinto. Essa conversa, ele nunca conseguiu descobrir sobre o que era ou com quem ela falava. Ele decidiu sair de perto da porta, para que ela não saísse sem aviso e pensasse que Marcus estava procurando ouvir alguma coisa. Ele se dirigiu para outro lugar que não levantasse suspeitas indevidas e desnecessárias.
Um pouco antes do fim de seu turno, achou por bem ir até a sala de autópsia para limpá-la. Haviam alguns corpos ensacados lá e fechados com zíper. Os armários dos corpos estavam lacrados, como era de praxe. Ainda com a sutil lembrança da noite passada, ele limpou o mais rápido possível e saiu dali, bateu seu cartão-ponto e foi para casa. Finalmente ele descansou, com a certeza que o qualquer coisa de ruim que tivesse acontecido seria apenas sua imaginação.
Na noite seguinte os problemas recomeçavam. A Dra. Elizabeth voltou a se trancar na sala da autópsia e agora, segundo os relatos do paciente, ficou lá todo o turno. Ela não saiu sequer para comer ou ir ao banheiro, o que fez Marcus temer que ela estivesse fazendo suas necessidades lá dentro mesmo. Novamente os ruídos voltaram a ser ouvidos e dessa vez com intensidade mais forte do que o normal. A porta chegava a tremer tamanha a força com que era batida. Eram murros fortes e incessantes. Ele se trancou no banheiro, tapou os ouvidos e lá ficou por mais de 4 horas, até que o barulho fosse ficando mais fraco e enfim desaparecesse. Naquele dia, Marcus bateu seu cartão e foi embora de táxi, apavorado com o que tinha ouvido. Na tarde seguinte, ele se encaminhou até o Diretor Hans e apresentou sua demissão, o que foi prontamente recusado. Marcus ouviu, pasmo as palavras de seu superior ao dizer que a Dra. Elizabeth o elogiava constantemente nos telefonemas que trocavam diariamente. Então ele lhe propôs que explicasse porque queria sair do emprego e, mais uma vez, temendo por algo que não sabia explicar, se calou, na noite seguinte, ele estava lá novamente, amedrontado com sons que não saiam da sua mente. Marcus se apavorava com cada barulho nos corredores, escritórios, a cada vez que sua vassoura caia no chão ou roçava pela parede até sua queda. Ele chorava compulsivamente ao ver a escuridão dos corredores e não ousava passar pela sala da autópsia. Pois à medida que se aproximava, via a porta sendo esmurrada. Marcus afirmou que, em mais de uma oportunidade, viu o trinco sendo mexido pelo lado de dentro vagarosamente, mas a porta não abria, talvez pela porta estar trancada, ou pela debilidade do ser que tentava abri-la. Ele assumia não ter certeza de nada do que via ou ouvia. Sabia que a morte era forte naquele lugar, mas como explicar a vida que seguia lá dentro?
Ele procurou a Dra. Elizabeth para entender que insanidade era aquela, pois sentia que a sua própria estava em jogo. Ele não a encontrou e o barulho da porta sendo forçada estava cada vez mais forte. Deduzindo que ela estava fazendo algo maligno dentro daquela sala, ele se trancou no escritório dela, rezando a Deus para que sua misericórdia estivesse sobre ele. Mas a resposta, segundo Marcus veio em forma de um cansaço violento. Ao abrir os olhos já era de manhã. Outro funcionário da limpeza o acordou, questionando o que acontecia para ele estar na sala da legista. Ele levantou-se apressado, puxando pelo braço o pobre rapaz até o onde aconteciam autópsias e abriu a porta com a força de quem estava apavorado, mesmo que também estivesse decidido. Em dois seria muito mais fácil lidar com alguma coisa de outro mundo do que solitariamente. Surpreendentemente, eles não viram nada lá dentro a não ser as gavetas fechadas e a sala organizada. Marcus caiu no choro, outros funcionários que estavam chegando foram ver o que estava acontecendo, gerando, após as devidas explicações subitamente apavoradas de Marcus, os comentários que o trabalho era demais para ele e que o clima de morte não estava o fazendo bem.
Esse
era apenas seu quarto dia de trabalho e o Diretor Hans foi chamado para, mais
uma vez, contornar a situação, mas não foi localizado. Marcus não conseguia
falar, tamanho o horror do que tinha vivenciado mais uma vez. Dessa vez, ele
não conseguiu se provar, ainda que no fundo talvez não quisesse e assim foi
demitido pelo vice-diretor que surgiu na ausência de seu superior. A Dra.
Elizabeth não seria mais vista por mais ninguém e então surgiu a especulação de
que tinha ido embora da cidade, com medo de que alguém descobrisse algo ilegal
que fizera em sua gestão noturna.
Em sua casa,
deitado na cama, ele não conseguia pensar no que tinha acontecido, pois apenas
a mera imagem da porta tremendo o deixava choroso e encolhido debaixo das
cobertas. Os dias se passaram e ele foi ficando cada vez mais debilitado, sem
comer e sem sair para buscar emprego. Não sair de casa deixou sua mente confusa
a ponto de jurar até os dias de hoje que via a porta do seu armário tremer ao
escurecer. Ele ouvia barulhos do lado de dentro e gemidos que pareciam de uma
pessoa. Durante a noite, andava pelas ruas, parando desconhecidos para lhes
dizer que os mortos estavam tentando sair do necrotério. Alguém mais apavorado
chegou a chamar a polícia, mas não resultou em nada. Apenas o levaram embora
para sua casa e pediram para que não importunasse mais ninguém. Os oficiais
tinham crimes de verdade para se preocupar e não se incomodaram com um
desempregado.
O paciente chegou a procurar sua família, mas não lhe deram atenção. Diziam que ele estava impressionado por trabalhar em um lugar que cheirava à carne putrefata e que a responsabilidade de manter um lugar como aquele limpo constantemente tinha enlouquecido sua já alquebrada mente. Marcus já não sabia em acreditar, pois sabia do que via em casa e dos horrores vividos no seu antigo trabalho. Ele chegou a confidenciar que pensou em suicídio, mas houve algo que o impediu de cometer isso, pois sempre gostou de viver e vida intensamente. Ele pensou em sair da cidade e ir para Jugde Hill, que não era tão longe assim, mas não achou certo usar o resto do dinheiro que tinha para subir montanhas ou visitar a praia. Apesar do trauma evidente que sofrera, ainda se mantinha são quanto ao dinheiro que deveria ser gasto.
Marcus tinha algo a mostrar a si mesmo, que é um desejo ardente até hoje. Provar que não estava enlouquecido. Ele precisava ir até o necrotério e procurar o maior de todos os mistérios, ainda que liberasse algo tenebroso sobre a cidade e sua já minguante vida. Ele se preparou durante todo o dia 11 de março daquele ano e quando a meia-noite chegou, ele se dirigiu para seu destino e estava disposto a provar para todos que estava certo.
Durante o seu caminho, ele sentia ser observado novamente. Ele estava temeroso, com medo de que houvesse algo espreitando pelas ruas e a cada olhar que dava para os lados, o sentimento de insegurança aumentava. A madrugada já havia afugentado todos para as suas casas e ele se encontrava só enquanto ia até o fatídico lugar. Não era fácil para ele, pois além dos traumas recentes, a incerteza do que encontraria, e o pavor sempre presente com as sombras projetadas pela luz do luar, Marcus também tinha que lidar com as consequências que ele sabia que não tardariam a chegar, depois que invadisse o necrotério. Ele dizia, nas sessões, saber que seria preso e quem sabe até culpado pelos misteriosos ocorridos que dizia ter presenciado. Não havia futuro para alguém demolido por dentro. Assim sua caminhada ganhava força. Para um homem que não tinha nada a perder, ir até o fundo do poço seria apenas o fim de sua jornada.
Ao chegar à faculdade, esperava maiores dificuldades para entrar do que realmente teve. Passar por um ou outro que faziam a ronda do lugar não foi exatamente difícil, mas exigiu calma e silêncio por parte dele. Marcus ficou escondido sob as mesmas sombras que aprendeu a temer e tinha pavor só de pensar do que poderia estar escondido ao seu lado. Ao chegar às portas do necrotério, respirou fundo, como se pensasse se deveria ou não entrar lá. Por fim, decidiu ir, mesmo que a incerteza tomasse conta dele, pois já não havia motivo para desistir. Já na entrada do local, o silêncio mostrava que tudo estava abandonado, sem uma pessoa por lá. Ele sabia que teria de procurar pela Dra. Elizabeth, que estaria produzindo algum horrendo pavor para destruir tudo o que respirasse em Foxfire.
Lá dentro a escuridão tomava conta de tudo. Não havia luz alguma e sequer barulho algum, o que, de certa forma, o aliviava. Talvez ele tivesse alguma esperança de que tudo o que viveu dentro daquela parede tenha sido apenas uma ilusão fruto da sua própria insanidade. Ao caminhar cuidadosamente pelo primeiro corredor, sentiu água molhar e correr para dentro dos seus sapatos. Em poucos dias, algo havia dado muito errado por lá e logo não tardaria a ser amplamente conhecido por todos. Após molhar seus pés, por dentro do seu calçado, cada passo seu era ouvido pelo ranger do couro e da borracha sob seus calcanhares.
A Dra. Elizabeth parecia mesmo ter sumido daquele lugar. Ao passar pela sala dela, não havia o menor sinal de que ela houvesse passado por lá nos últimos dias ou que alguém tivesse limpado o recinto dela, apesar da disposição semelhante que tudo estava, se comparado com dias antes, quando ele ainda trabalhava lá. Ele entrou no escritório e folheou algumas anotações que pareciam ser dela. Dentre cálculos matemáticos rascunhados nas folhas um pequeno escrito entre as contas com dizeres indecifráveis fez Marcus tremer. Aprecia símbolos apócrifos de algo desconhecido. Sabia que alguma coisa estava prestes a sair errado, se é que já não tinha saído.
Ao voltar para o corredor, ouviu um barulho à frente. Tentando controlar o que sentia, ele decidiu investigar. Marcus resistiu ao próprio impulso de fugir e seguiu seu caminho até perceber que o barulho vinha da sala de autópsia. Não era o mesmo barulho ensurdecedor que o assombrou dias atrás, mas um barulho de gaveta abrindo e fechando constantemente. Naquele momento, ele já não tinha muito controle sobre si mesmo. Recostou-se na parede, perto da porta que dava acesso à sala e tentou achar a coragem que o acompanhava até poucos momentos atrás. Via que a porta estava entreaberta e que ali havia luz que escapava pela fresta. O barulho não parava com a sua proximidade. Marcus respirou fundo o e decidiu confrontar o que quer que estivesse acontecendo. Ele tocou a porta e a forçou para abri-la, algo que não teve dificuldade de acontecer. Subitamente o barulho parou. Ele observou, receosamente, que todas as gavetas estavam fechadas. A luz começou a piscar sobre ele, mas isso já não importava para quem havia sentido todo tipo de horror até então.
O chão, segundo ele, estava limpo, as mesas, em igual situação. Na verdade, tudo lá dentro estava em condições impecáveis. O cheiro era de pureza e se não fosse pelas gavetas mortuárias, não poderia ser afirmado que ali era um local que se guardava gente morta. Marcus caminhou vagarosamente, temendo que algo surgisse de algum ponto por trás das mesas ou das cadeiras. Quem sabe até de uma pequena mesa que ele afirmava ter no canto da sala, com um computador que parecia ser muito antigo. Os mortos pareciam em paz ali e o barulho da gaveta não poderia ser nada mais que sua imaginação, mais uma vez pregando peças maldosas.
De
repente, à sua direita, uma gaveta se abriu sozinha, mas com tranquilidade. A
mesa de dentro, que era retrátil, não saiu. Marcus afirmou que ouviu uma voz
estranha em que pedia para que ele se aproximasse para que pudessem
barganhassem algo. Marcus não teve coragem de chegar perto da abertura, mas
ainda assim pediu para saber quem era. “Somos muitos.” Dizia a voz. O paciente
disse que nesse momento todas as gavetas tentavam abrir e faziam o mesmo ruído
amedrontador que ele tanto ouviu, mas nenhuma teve sucesso. Apenas uma gaveta
manteve-se imóvel. “Queremos entrar novamente e estou disposto a dar-lhe o que
quiser. Ajude-me... você parece ser melhor do que os outros dois.” disse a voz
cadavérica. Marcus permanecia imóvel, sem saber o que fazer, mas tentando
demonstrar firmeza. Ele negou o pedido. A única gaveta que se manteve fechada o
tempo todo, foi se abrindo lentamente e a mesa retrátil foi saindo. “Eles
também não nos deixaram sair e aprenderam que não deveriam dizer não para nós”,
disse a voz. Nesse instante, Marcus disse que pôde ver horrorizado o preço de
dizer não para os mortos. A Dra. Elizabeth e o Diretor Hans estavam vivos, como
muitos supunham, depois do sumiço de ambos, mas estavam pela metade, com seus
sistemas digestivos unidos por costuras feitas por mãos hábeis. Os troncos de
ambos estavam também costurados, e seus rostos, horrivelmente despedaçados,
eram ligados pelas línguas deles. Elizabeth e Hans olharam para Marcus e, ao
verem-no, se lançaram para frente, esticando o único braço que lhes restaram,
que Marcus, horrorizado, deduziu ser de Hans. Eles se jogaram para fora da
mesa, em direção a Marcus. Eles se moviam em agonia, vagarosamente, enquanto
soltavam grunhidos dolorosos. Marcus apenas gritou de pavor e saiu correndo da
sala.
Ao entrar no
corredor, ele viu que as luzes estavam reestabelecidas e que a água que havia
entrado em seu sapato era sangue. Ele assume não se lembrar do caminho que fez
até sair do necrotério, mas se recorda que as vozes trêmulas de Elizabeth e
Hans podiam ser ouvidas até a porta da saída e que reconheceu aqueles sons como
pedidos de socorro, não que ele sentisse que estava apto para ajuda-los. Do
lado de fora, a polícia estava chegando, pois alguém havia feito uma denúncia
sobre a entrada de Marcus no estabelecimento. Ele gritava coisas desconexas e
assim que os policiais viram que nada havia dentro das salas e que tudo estava
na mais perfeita ordem, ele foi trazido até nós, onde reside até hoje. Marcus
tem apresentado tímidos sinais de melhora, mas ainda assim, necessita de muita
ajuda da família e do corpo médico, para voltar a viver em uma sociedade que
não o julgue por seus delírios. É o que desejo para ele e tenho certeza que o
tempo se encarregará de que ele fique bem.
Assim termino
esse relatório pessoal sobre este mistério específico da mente humana, com uma
pequena nota particular sobre todos os acontecimentos. Espero que isso nunca
seja conhecido por meus colegas, já que o conhecimento público de tais
informações não traria nada mais do que problemas para mim e minhas teorias
sobre as pessoas que tanto tratei através dos anos.
Temo que todo
o meu envolvimento com esse paciente tenha me deixado mais suscetível às
vulnerabilidades da minha própria mente. É doloroso pensar em mim como alguém
que tem problemas a serem tratados, justamente por ser sempre tão duro quanto
ao veredicto das necessidades de tratamento alheio. Mas preciso assumir, ainda
que internamente, que investigar tais fatos não tem servido apenas para curar
Marcus, mas sim para me compreender. Digo isso, pois, durante as últimas
noites, em casa, mesmo quase não tendo pensado sobre o caso de tal paciente,
não tenho mais dormido no meu quarto. Ultimamente tenho ouvido ruídos do outro
lado da porta do meu armário e uma voz gélida que me diz “Deixe-nos entrar.”.
Saitama de R'lyeh
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