Hoje
acordei cedo. Estiquei minhas pernas vagarosamente na cama, fiz os dedinhos dos
pés irem para frente e para trás como se quisesse despertar meus pés para o dia
que viria. Me virei para o lado ainda mais demoradamente. Minha mente estava
pronta, mas o corpo não e, no meu caso, isto sempre foi normal. Sempre precisei
de um pouco mais de estímulo para pular da cama. Eu não tinha pressa, nem fazia
sentido querer ter. Levantar seria bom, mas não precisaria ser naquele exato
momento. Nacha que espere.
Poucas vezes desperto bem disposta. Raras. Raríssimas vezes. E esta foi uma
delas. O silêncio lá fora ajudava, estranhamente. Lembro-me de tempos que a
falta de qualquer som para além da janela enlouquecia a alma. Hoje entendo a
bênção que é toda a ausência. Pessoas sempre são um incômodo e eu dou graças a
Deus por não ter que lidar com elas frequentemente. Na verdade, quase nunca. Só
lido com a Natasha. Minha lindeza deve estar pelo corredor como sempre faz
todas as manhãs. Ela brincou bastante com a gatinha dias atrás e é assim que eu
gosto. Em tempos como estes, qualquer pequena alegria é importante e a gente
aprende a se deliciar independentemente do tamanho deles. Hoje quero falar
muito dela. Acho que finalmente chegou a hora de escrever sobre como chegamos
aqui. Eu, ela e Jonah. Me parece crucial dizer o seguinte para quem achar estas
folhas algum dia: Filhos são um tesouro, mas mudam sua vida. São pequenas
caixas de pandora onde você se descobre a pessoa mais fraca, mas que encontra
forças para fazer o que for possível por eles. Assim é minha existência por
Nacha, minha princesa. Eu a salvei todos os dias de ser vítima dos piores males
do mundo até o dia que se tornou independente.
Nacha tem dois anos, na teoria. Parei de contar quando o Governo emitiu o
comunicado de que não teríamos mais calendários então não sei mais quando tudo
isto começou. Para suportarmos as dificuldades, aboliremos os dias. Acabaram-se
as datas festivas, as reuniões de família, disseram isso nas rádios e na
internet. Todos concordamos. Eu juro. Estávamos unidos finalmente em salvar
nossas vidas, nossa sociedade, nossa cultura, nosso ser e tudo o que deu certo.
Seria algo temporário para tempos difíceis. Assim foi feito. Os primeiros
períodos foram mais complicados. A sensação de que vivíamos em looping era
forte. Começamos com o calendário e depois partimos para coisas mais supérfluas
como roupas que poderiam confundir mulheres com homens. Rasguei minhas calças,
meus tênis, minhas camisetas largas. Naquele período, Natasha ainda era um bebê
e Jonah me estimulava a sempre lutar para ser uma pessoa melhor. Ele destruiu
cada jeans que eu tinha com um sorriso no rosto. Depois foi nosso direito a
voto. Tempos ruins se avolumavam e disseram ser importante ter menos pessoas
escolhendo representantes. Era um risco à segurança nacional tanta possibilidade
de pluralidade, por isso a Lei Rousseau resolveu esta questão. Então,
concordamos. Era imperativo que alguns grupos cedam agora para que não tenham
que desistir de tudo depois, dizia algum ministro. Ovacionamos cada palavra
daquele discurso. Os homens escolhiam por nós justamente por sermos parte
deles. Éramos a cauda, a parte que sustentava a cabeça. A Palavra era essa e a
seguimos. Já mais perto dos conflitos que vieram logo depois, foi nosso direito
de ir e vir. Apenas acompanhadas de outras mulheres que lutassem ao nosso lado ou
de nossos maridos. Era importante, não tínhamos escolhas. O inimigo havia
chegado e haveria guerra. Isso foi muito tempo antes do Evento.
O inimigo era mentiroso, diziam. Prometeram um mundo de amor, igualdade e nos
entregaram o fim do país como conhecíamos. Planejaram e não deixamos. Demos o
primeiro tiro, é verdade. O segundo e o terceiro também. Foi pelas nossas
crianças, eu dizia. Temia pelo futuro. E por isso nos vilanizamos, justificadamente,
em determinado momento da história. Mas fomos vítimas desde muito antes da
revolta que revolucionou nossa mente a ponto de não precisarmos mais da
ciência. Entendemos que éramos feito de matéria quase diferente dos Imorais,
que por sua vez eram carnais ao extremo. Tínhamos a Palavra ao nosso lado.
Éramos filhos de Deus. A luz estava dentro de nós. Sangrávamos menos do que
eles, mas éramos mais sensíveis psicologicamente. Por isso ganhamos do Governo,
aos poucos, todo um aparato informativo sobre como mantermos a mente forte
diante das adversidades. Foi nossa salvação. Criamos maneiras de sobrevivermos
à guerra que não quisemos. Foi duro, mas precisávamos escolher um lado. Eu
escolhi o meu em prol da minha vida. Eu não quero falar sobre tudo isso agora.
Não sei se vou falar depois também. Acho que não tenho tanto tempo. Mas talvez
eu deva dizer algumas palavras. Sim, direi, então. Nós derramamos o sangue
inumanos daquelas criaturas, mas mentiram sobre o que perdemos em troca do bom
combate. Vi amigos serem levados e nunca mais voltaram. Trabalharam
forçadamente num campo de concentração longe dos olhos de todos. Foram contaminados
pela selvageria daqueles que descobriríamos serem infiltrados em nossa própria
espécie. As informações eram escassas, mas sempre muito certeiras. Queriam um
novo apocalipse e conseguiram. Milhões morreram. Eu mesma matei três Imorais,
mas Jonah nunca me deixou ver o que tinha por baixo do disfarce alien. Cada um
de nós tinha um papel bem distinto no dia a dia, mas na hora da luta,
precisavam de todos nós juntos, mas ele mesmo tinha nojo e eu passava mal cada
vez que o sangue saía. Era mais escuro do que o normal. Sabíamos que, por baixo
de suas belas peles, haviam seres horríveis e deformados. O Governo dizia isso
num período já sem televisão, rádio ou eletricidade. A energia elétrica havia
sido danificada pelos inimigos e nunca conseguimos reaver. Virou tudo boca a
boca. Um enorme e fraternal telefone sem fio. Era como voltar à infância em
alguns momentos, mas a confiança nos fazia ver a verdade em cada uma das
informações que recebíamos. Ora um caixeiro viajante nos informava, ora algum
companheiro de batalha falava em reservado com Jonah, que repassava tudo para
mim depois. Um conhecido nosso disse que um conhecido dele conheceu alguém que
havia conseguido ver a verdadeira forma deles depois de esfaqueá-lo. Ele puxou
a pele do rosto e haviam pontos espinhosos. Ou seja, provavelmente aquela era a
verdadeira forma deles. Pareciam início dos pelos humanos, mas não podia ser.
Sabia que não podia ser verdade. Eles eram o mal. O demoníaco. Era nojento e
parecia que vinham de outra dimensão e por isso ele acabou vomitando, assim
nosso conhecido havia dito. Ele falava de sangue espesso e que o olhar de
desespero do Imoral deixava evidente que ainda estava vivo, o que era
humanamente impossível para uma pessoa normal. Ao menos até perder os olhos
naquela puxada. Explodiu ou sei lá o quê. Ficava um vazio inumano quando um
líquido esvaía. Nós, que estávamos afastados das grandes cidades, tínhamos um
misto de fascínio com ojeriza de tudo o que nos informavam. Alienígenas ou não,
meu mundo precisava ser defendido. Por isso mesmo menti a Jonah uma vez, uma
única vez. Disse a ele que iria até o poço pegar água. Minha vizinha foi
comigo. Havíamos combinado tudo um dia antes escondidas. Ela tinha um deles em
cativeiro. Eu tenho mesmo e quero que veja comigo o que ela é, disse e eu não
acreditei. Pegamos nossos baldes, nossos revólveres, facas, cobrimos nossa
cabeça com os lenços de cores magenta e ela me acompanhou até sua casa. Lá
tinha água em abundância e me pouparia uma longa caminhada até o poço.
Ursula, este era o nome dela, a minha vizinha, dizia que era verdade. Preciso
falar sobre ela? Acho que sim. Será rápido. Ela era minha melhor amiga antes do
Governo abolir os laços não-consanguíneos. Foi assim com amizades próximas,
relacionamentos não-ortodoxos, efeminados, relações pecaminosas e qualquer
coisa que a igreja desaprovasse. Precisávamos ter foco em manter tudo o que foi
conquistado. Tudo isso seria reavaliado e repatriado depois. Aceitamos em prol
do nosso próprio Destino Manifesto. Éramos os novos bandeirantes contra a
batalha que definiria tudo que viesse depois em nossa história. Aceitei e me
submeti às regras. E logo depois disso eu encontrei Jonah. Isso é tudo que devo
dizer agora. Voltando a Ursula, eu e ela ainda trocávamos algumas poucas
confidências no caminho do poço, mas era muito menos do que o normal, muito
menos do que antes. Era quase nada. Normalmente era em silêncio que caminhávamos.
Ela não precisava ir até o poço porque não faltava água em sua casa, mas me
acompanhava porque era apenas assim que eu poderia sair sem os olhos cansados
de Jonah, que já tinha com o que se preocupar. Apesar de todas as restrições,
ela escolheu morar próxima a mim. Acho que o Governo nunca soube dos nossos
vínculos anteriores e foi melhor assim. Já havia muita mágoa no mundo e ninguém
precisava expor mais uma. A cisterna que ela mantinha era coisa de seu falecido
marido, colega de Jonah e nunca perguntei muito sobre ele, assim como ela nunca
perguntava sobre Jonah. Era provável que um não soubesse dos segredos do outro,
como a cisterna na casa dela ou como ele tinha algo tão difícil de se arranjar
num mundo escasso como o nosso.
Nessas idas e vindas, normalmente nos olhávamos quando havia algum barulho
estranho e nos preparávamos. Quando havia o silêncio nos olhávamos também, mas
era sempre tudo muito rápido quando nos detínhamos por entre as árvores para
ver nossas armas e conferir se estavam prontas para qualquer ação. Jonah não
sabia que mantínhamos esses momentos jazidos de qualquer amizade. Era só a
loucura que o fim do mundo causava. Deus sabia que essas conversas me
incomodavam, depois que acabava. Acho que era carência de ter alguém perto já
que Jonah provia todo o resto como comida, caça, as defesas da casa e depois
era rústico demais pra me possuir. Doía. Por isso era bom o afeto de Ursula.
Era uma boa amiga apesar de amigas não existirem mais. Ela não mentiu e lá
estava. Era uma Imoral disfarçada de mulher. Amarrada, ferida na cabeça, na
garagem de Ursula. Se mexia muito devagar, talvez devido aos justos ferimentos
que recebera. Os olhos estavam roxos e achávamos que aquilo era a real forma
dela por debaixo da pele. Cientistas do Governo diziam que haviam coisas escondidas
neles, como saliências.
Eu dei um nome a ela.
Não é ela, Ursula. Olhe o queixo. É ele.
Ela tem seios. Olhe os volumes.
É ele. Nos ensinaram a ver a diferença.
Eu não tive coragem de olhar por baixo da roupa. Ela já sofreu muito pra eu
trazê-la aqui.
Ele.
Ele. Eu dei um nome a ele.
Qual?
Rouxinol.
Esse nome é ridículo! Por que escolheu esse?
Não é óbvio? Ela está roxa.
Rouxinóis não são roxos. Ainda é um nome ridículo.
Você sempre deu risada das minhas péssimas escolhas. Está rindo de novo!
Droga, Ursula!
Ria. Rouxinol, ela está rindo para nós!
Chega, pare.
Ela é bonita. Não parece inimigo. Posso usar ela para descobrir coisas.
Ninguém parece inimigo. Por isso o Governo acabou. Porque acreditávamos que os
inimigos eram inofensivos.
O Governo acabou e ainda lutamos.
Vamos continuar lutando. Precisamos restaurar tudo.
Les, acha que...
Alessia.
Desculpe, Alessia. Acha que ela pode ser humana?
Ele.
Ele.
Ele não me parece humana. O roxo é muito estranho. Essas protuberâncias na
bochecha também.
Eu precisei ser violenta para arrastá-la. E nós também ficamos roxas. Eu vi teu
braço aquele dia depois que discutiu com Jonah.
Mas nosso roxo é humano. É diferente. Os olhos dele estão vermelhos.
Eu bati nel... nele. Muito.
Mate, Ursula. Se virem você com isso...
O Governo acabou, você disse. Quem vai achar isso ruim?
Eu.
Ainda preciso analisar o corpo dele.
Acabaram os tempos de observar. Se ele for um mutado, precisa matar isso.
E você se opõe que eu olhe?
Por mim estaria olhando para o que tem por baixo.
Da calça tática dele?
Da pele. Vamos fazer?
Guarde a faca! Hoje não.
Preciso ver como eles são.
Hoje não. Por favor, guarde a faca. E vá embora.
... Preciso pegar água.
Na cisterna. Bata a porta quando sair.
Tranque-a quando eu for embora. Nós somos o coração do Governo. Precisamos
resistir.
Eu tranco tudo, Alessia. Tudo.
Fui embora frustrada. Amolei minha faca por quase uma hora antes de sair. Mesmo
jurando que jamais mentiria para Jonah, menti. Tudo para ter certeza. Eu
precisava saber. Se não eram humanos, o que eram? Mesmo Ursula, apesar de me
indignar com a fraqueza da compaixão, me surpreendia com a capacidade dela em
se proteger dos inimigos. Ela era forte. Me orgulhava tanto dela! Mas a odiava
ao mesmo tempo. O mundo não tinha lugar para pena de quem queria nossa morte.
Engraçado pensar nisso. Havia meses que não víamos Imorais armados ou não, mas
as informações que recebíamos de viajantes era que a Guerra não retrocedia nas
grandes cidades. Eu queria ir, mas Jonah dizia que não. Estávamos afastados de
tudo, em nosso terreno íngreme e seguro. Por trás de nossos grandes muros.
Seguros, mas não a salvos, disse a ele um dia. E de volta recebi um tapa. Nunca
mais o questionei. Lutaríamos se a Guerra chegasse a nós e não agiríamos como
arruaceiros de novo, segundo ele. Eu não era arruaceira. Apenas me deixei levar
pelo ódio. Quem nunca quis matar? Era normal, disseram. E assim naturalizamos a
vontade de fazer a justiça. Eu e Jonah perdemos a linha e não nos arrependemos
durante muito tempo.
Cheguei em casa com o balde sobre a cabeça. Tirei a cinta com as armas e
coloquei sobre a mesa. Jonah estava irritado e andava com passos pesados pela
casa com Natasha no colo. Eu tinha demorado. Les, onde estava?, perguntou aos
gritos. Natasha gritava mais. Ela tinha fome. Já colocando o seio para fora e
com ela para mamar, me desculpei e menti de novo, desta vez em nome da
irresponsabilidade de Ursula. Disse que tivemos que nos esconder por causa de
um dos Imorais andando perto da rua. Ao menos achávamos isso e foi um engano.
Foi pela nossa segurança, Jonah. Fui incisiva, convincente. Meu erro. Ele se
ergueu. Nunca responda ao seu homem. Ele se aproximou rápido e me segurou pelo
braço. Senti seu hálito corrosivo de álcool. Ele poderia me matar e nada
aconteceria. O Homem provê. A mulher edifica. Concordamos sem pensar e fizemo-nos
uno com nossos maridos. Qualquer tipo de amor fora disso seria punido. Era
assim que os Imorais amavam. Não podíamos ser como eles, então, nos tornamos
outra coisa. Dependíamos do homem para sermos alguém. Isto nos dava direito às
armas, direito de ter filhos, ser resistência, estarmos vivos. Como dizer não?
Era mais fácil ainda ter essa decisão depois de que os primeiros efeminados
foram executados. Precisávamos dar um pequeno exemplo, disse um outro ministro,
logo após eles fuzilarem mais ou menos cinquenta mil deles. Foi assim que os Imorais
surgiram, como parte de um plano galáctico de dominação. Aos verem seus peões
serem mortos, apareceram e tentaram nos deter por meio de promessas. Mas aí,
então, demos nossos tiros.
Naquela mesma noite, houveram trovões. Nunca tinha ouvido nada como aquilo. A
chuva veio forte como jamais havia sido antes. Se um dia disseram que houveram
tempestades como aquela, mentiram. Foram três dias assim, nos assustando com
trovões, céu nublado, muita chuva, poucas conversas e muito medo. Sabíamos que
os Imorais tinham criado métodos para mudar o clima. Foi assim que enganaram a
todos nos tempos de ouro da humanidade e nos derrubaram com seus olhares
preocupados. Ainda assim, não eram apenas trovões. Pareciam estar quebrando o
céu. Eu e Nacha cobríamos nossas orelhas quando o barulho vinha e parecia ser
mais do que a fúria da natureza, mas uma cólera que rugia do inferno. Seria
assim. Eles testarão nossa fé, disse o Governo. Mas ninguém estava preparado
para tudo o que viria depois. Seria demais para muitos de nós. Mas não todos.
Dias depois disso, o céu amanheceu sob neblina. Um nevoeiro, diriam os
apaixonados por livros. Nós sabíamos que era um ataque. Cobririam os céus para
nos derrotar. Jonah fechou a casa. Tínhamos comida para pouco mais de um mês.
Algo iria acontecer. Algo grande. A névoa trouxe consigo barulhos do lado de
fora. Sussurros, golpes, gritos. Não sabíamos de qual lado eram os gritos. Os
Imorais, quando feridos, gritavam como nós. O diabo se passa por anjo de luz,
dizia o Livro. Eram a enganação. Abraçamos o caminho certo e esquecemos o
errado. Ainda assim cada berro doía a alma. Ouvi sons de tiros e do que parecia
carne sendo despedaçada aos fundos do quintal. Eu não tive coragem de olhar
pela janela. Mesmo que tivesse, Jonah me impediria. Natasha me ocupava. Tapava
seus ouvidinhos, cantava músicas de ninar enquanto gorgolejavam à nossa porta.
Lágrimas escorriam pelo meu rosto enquanto eu sorria para ela. Nacha dormia e
eu permanecia acordada a noite toda. Jonah ficava de ronda. Ele era o homem.
Agradeci por não ser eu de espingarda em punho para atirar no que fosse aquilo
que acontecia para fora do nosso território, às vezes perto da porta. Perto demais.
Fingíamos não estar lá dentro.
Seguiram os períodos e ligamos o rádio à pilha que ainda sobrara para momentos
de urgência. Apenas estática. Todas as estações confiáveis apenas emitiam o
chiado irritante da incerteza. Natasha ficava impaciente. Queria brincar, me
puxava para a porta, mas eu não podia ir. Jonah não olhava para além da
cortina. Apenas ouvíamos o rádio dizer nada. Eu sofria. Pensei em Ursula. Ela
estava há poucas casas de distância, mas não havia condições de irmos até lá ou
dela chegar até nós. Torci para que um grito de horror no meio da noite que me
acordou não fosse o dela. Jonah me balançou pelos braços com força e dizia que
era um pesadelo. Acho que ele também dormia e não tinha coragem de admitir. Temi
por Ursula mais uma vez.
Nacha parecia cada vez mais agitada e irritada. Jonah me cobrava para agir
feito mãe. Eu não tinha coragem. A pele daquela menina linda era pura demais
para experimentar a força. Era desigual, injusto. Mas era assim que ele queria.
E eu fiz. Cada tapa piorava seu nervosismo e o meu. Ela chorava de dor, eu de
raiva. O Governo aprovaria esse método? Sim. Mas eu era mãe. Devia haver um
jeito melhor. Mais períodos se passaram muito devagar, acho que quase duas
semanas, e do nada ela parou com o choro sem sentido. Foi de uma hora para
outra. Ela ficou quieta. Me acordou e me puxava para ir lá fora e eu continuava
sem poder ir. Eu não queria e tinha medo, mas estava curiosa.
O sol batia na janela naquela manhã. Era o fim da névoa. Acorda, Jonah,
sussurrei. A névoa passou. Ele se ergueu com os olhos cheios de remela. Não se
virou para mim. Fitou a janela do nosso quarto. Natasha apontava para fora,
parecia alegre. Eu não me sentia feliz, mas queria vê-la feliz. Por favor,
Jonah, posso ir lá fora com minha filha?, ele balançou a cabeça de cima a
baixo. Me arrumei, coloquei meu longo vestido, meu sapato de pano, meu lenço
magenta, assim como cobri a cabeça dela. Fomos para a frente, um pouco
temerosas, mas seguras com Jonah já arrumado e em frente com seu revólver. Era
apenas uma rápida ida para a sacada para esquecermos os períodos de chuva e
logo voltaríamos.
Então conhecemos o que chamei de Evento.
Acredito que era sete e pouco da manhã, não me lembro mais. A primeira coisa
que fizemos foi olhar para o céu azul e limpo. Não tínhamos como saber que
seria como foi. Nós três fizemos isso juntos sem pensar. E lá estava aquilo que
não havia como nomear. Eu não sei se quero descrever com exatidão o que vimos,
mas ao menos uma vez eu vou fazer isso. Fosse o que fosse, orbitava para além
de nossa atmosfera, gigantesco. Visível por quase todo o céu. Era visualmente
poluído, iluminado pela luz do sol, com milhares de tênues e longos filamentos
brilhantes em toda a sua extensão, um tronco delgado, com várias esferas em
volta e com outras que atravessavam o que parecia uma carne esponjosa de seu topo.
E se é que podíamos chamar de topo, duas saliências gigantes que se erguiam em
um ângulo curvo de 90° e que desciam por algo pontiagudo para baixo, como
chifres deformados, que só podia deduzir ter centenas de quilômetros. No alto
das saliências havia uma intersecção que mexia como se fosse um emaranhado de
cobras agonizantes e no encontro destes pontos algo semelhante a um olho, mas
se fosse isso mesmo, era cego. Mexia de um lado para o outro como se estivesse
em REM. Entre tudo aquilo, coisas que pareciam pústulas inchadas que
nitidamente estavam fechadas e ansiavam por abrir. Sua cor era difícil de ver
por causa da iluminação solar, mas hoje consigo ver um tom de marrom com
esbranquiçado e cinza, porém com vias avermelhadas e outras negras. É como se
fosse algo apodrecendo eternamente e que se renovasse ao mesmo tempo. Era quase
pulsante. Víamos um líquido parecido com sangue esguichar e orbitar em volta de
si até se dissipar. Sete anéis em três fileiras giravam em órbitas em torno do
que seria o pesadelo de um mundo inteiro. Definitivamente não parecia vivo,
porém, ficava parado de uma forma quase observacional. Não parecia ser grande o
suficiente para ter gravidade própria, mas não parecia físico o suficiente
também para que gerasse algo assim. Olhar para aquilo era ver algo suavemente
translúcido. Assim que chegávamos ao
final da parte inferior, o mesmo bifurcava no que pareciam ganchos para a
direita e para esquerda. Eles se mexiam como se fossem levados pelo vento
solar, mas tremulavam por alguma outra razão, com calma aterrorizante. Era como
se tivesse vontade própria, mas como se seguissem ritmos delineados. Era quase hipnótico
vê-lo trepidar. Havia uma beleza obscura naquelas veias, ou coisas que pareciam
veias, que se enrolavam por toda a extensão de si mesmo, seu corpo parecia ter
veias pulsantes. A palavra corpo não tem valor literal aqui. Eu disse que não
parecia vivo mais acima, porém a verdade é que parecia um monumento senciente
do que estava se fazendo parecer. Era imponente e aterrador. Talvez fosse o
tamanho descomunal que tinha. Talvez fosse o horror que me tomava a vista, ao
mesmo tempo que me deixava fascinada. Era algo que os olhos de nenhum ser vivo
deveriam enxergar, sequer entender sua natureza. Era grotescamente belo.
Parecia uma depravação de algum sonho erótico de Hans Ruedi Giger, mas com tantos
detalhes assimétricos que lembravam qualquer devaneio de Wassily Kandinsky, sem
o colorido vivo de Richard Pickman. Era apenas o mais puro horror de alguma
quinta ou sexta dimensão. Só posso deduzir. Era tão bizarro que parecia
angelical, de maneira caída, claro. Um demônio imerso na beleza divina, algo
que fariam meus olhos estourarem apenas por existir.
Mas o pior estava por se fazer diante de nossos olhos. Vibrando por alguns
segundos, se retorcia em torno de si mesma, surgiam patas de seu meio, patas de
três segmentos, com espinhos entre as secções, de tamanhos irregulares,
abraçava e esmagava rapidamente o próprio espaço e implodia numa dança
demoníaca, apenas para depois de pouquíssimos segundos retornar ao seu primeiro
estado, saído direto de sua parte externa que sobrava e entrava em si. Era como
se fosse um entrar e sair agorento de si mesmo. Fez o movimento grotesco várias
vezes quando o vimos. Jonah pegou seu revólver, me olhou friamente, com um certo
pesar, e estourou os miolos. Eu vi tudo sem piscar. Nacha também, mas apenas
ela gritou desesperadamente.
Houve mais.
Logo em seguida, Natasha, ainda gritando, caiu dos meus braços se debatendo e
apertando seu peito com as mãos. Durante seu primeiro berro de voz estranhamente
gutural, sua bochecha se partiu, seu queixo deslocou para baixo e o grito
abafou como se tivesse algo em sua garganta. De sua boca, uma nova Natasha surgiu
da garganta, deslizando barulhenta pela língua, fazendo a primeira entrar entre
suas pernas como se fosse uma ilusão. Eu chorava caída no chão, desejando que a
morte de Jonah tivesse acometido a mim também, mas Deus quis que eu
permanecesse desperta e olhando aquilo tudo que acontecia com minha filha, que
eu já tinha largado em desespero. Natasha morreria, eu tinha certeza, naquele
espetáculo nojento, ao mesmo tempo abstrato. De seu segundo grito novamente seu
rosto se contorceu e rasgou. Não havia sangue, mas os ossos quebravam e os
músculos se partiam. Era tudo muito rápido até que uma nova Natasha surgisse da
boca. A anterior se acumulava e sumia nas pernas e glúteos. E novamente ela
gritava. Todo o horror de novo. E de novo. E de novo. E de novo. E de novo, de
novo. E de novo. E de novo. E de volta outra vez. E de novo. Até que parou. Ela
caiu. Eu tinha medo de chegar perto. Havia fumaça em torno dela. Era um pedaço
meu ali, morto. Eu deveria enterrá-la. Chorei sem parar por alguns minutos. Não
sabia como parar e, me enchendo de coragem, corri até seu corpinho e a abracei.
Ela me abraçou também. Ainda estava viva.
Nacha estava viva, mas inconsciente. Jonah enlouqueceu com a vista do Evento e
Nacha teve algum tipo de efeito colateral à vista do que estava nos orbitando.
Nunca entendi porque eu não tive nenhum tipo de reação e no fim das contas
talvez isso não importasse. Todos estariam à própria sorte e não seria eu a
conseguir dar explicações sobre como sobreviver ao fim do mundo. Seja lá o que
fosse aquilo, eu sabia não ser do nosso mundo, talvez nem do nosso universo. Um
Deus cego, jazendo vivo em nosso espaço sideral, gigante. Uma força atômica do
desespero e caos. Talvez fosse isso que o Governo tentava impedir. Os Imorais
venceram a guerra., achariam vocês. Mas eu vi, dias depois, muitas pessoas de
calças táticas caídas pelo chão também. Mortos. Todos nós perdemos. Quisemos a
guerra civil e só conseguimos a extinção.
Eu voltei para dentro, com a arma de Jonah em punho. Se houvesse algum
sobrevivente, não ia querer que encontrasse uma arma na varanda da minha casa.
Me sentia flutuando sobre o chão. Não sentia meus pés. As lágrimas ainda
vertiam pelo meu rosto. Natasha parecia dormir e me pareceu um pequeno anjinho.
Seus bracinhos cruzados, o rosto virado para meu seio, sua boca babando na
minha roupa. Minha princesa sobreviveu ao apocalipse. Sei que pareço feliz por
ela ter crescido mesmo depois de quase dois anos do Evento, mas a verdade é que
me faltou coragem para matar a ela e a mim logo em seguida. Ninguém devia viver
num mundo que algo fora da imaginação a fizesse ser cativa de seu próprio lar.
Jonah entendeu isso e eu, muito covarde, não percebi o que era liberdade,
tampouco tive a audácia de fazê-la acontecer. Viver era um fardo e ainda
pioraria.
No dia seguinte, acordei novamente sentindo como se tivesse sido atropelada.
Natasha estava dormindo, virada de bruços ao meu lado. O que vou narrar a
seguir aconteceu em questão de algumas semanas e vou tentar ser o mais breve
possível. Ao acordá-la, ela abriu os olhos e suas órbitas estavam vazias.
Gritei. Ela parecia normal. Me abraçou. Chorei. Ela ignorava. Falava seu nome e
ela não prestava atenção. Estava surda. Ela não ouvia mais minha voz e parecia
feliz balançando a cabeça para os lados em algum ritmo cadenciado enquanto
sorria. Ela acariciou meus cabelos e senti a ponta de seus dedos ficando
ásperos e não me pareceu importante naquele momento. Acho que era o jeito dela
de dizer que estava tudo bem.
Durante o passar do dia dei a ela alguns brinquedos e Nacha tateou cada um. Era
brinquedos conhecidos dela. Uma boneca, alguns vestidinhos. Ela ignorou e saiu
andando pela casa. Eu fiquei por perto com medo que ela tropeçasse em alguma
coisa e caísse e se machucasse, o que não aconteceu. Ela parecia conhecer toda
a casa melhor do que eu, inclusive ignorando a porta que levava para a frente
da casa e eu mesma faria isso por muitas semanas que se seguiram, sem coragem
de ver aquilo que se instalou nos céus do planeta Terra. Eu tinha medo que uma
nova olhada para aquilo finalmente me fizesse encontrar o meu fim, então fiz de
dentro da minha casa o verdadeiro motivo para ser visto, sem muita coragem de
ficar ao lado de Nacha, porém sem abandoná-la.
Seu corpo fervia ainda, mas um pouco menos. Olhar para ela era como não a
enxergasse mais como minha menina. Seus olhos, antes de caírem, eram expressivos
e suas piscadas de órbitas vazias eram horríveis. Eu evitava seu rosto o máximo
possível. Assim como não quis olhar o resto de seu corpo que parecia normal
debaixo do pijama, mas não tive coragem de conferir. Decidi ali que o fim do
mundo devia ter mais lugar do que a preocupação com banhos. Amava Nacha, mas
não mais do que minha sanidade. Isso fez de mim uma má mãe? Me dei o direito de
conviver com ela, mas não de vivê-la. Se ela tivesse se desumanizado mais já no
primeiro dia, eu teria dado um tiro em sua têmpora ou aberto a porta para que
fosse embora e vivesse à própria sorte. Mas algo em mim queria mantê-la por
perto. E a mantive.
Lembro-me daquela noite, quando fui para a cama. Não havia comido, sequer
bebido nada. Ao me sentar no colchão, ainda sentindo o cheiro de Jonah, olhei
para entre minhas pernas e no chão, lá estavam os dois olhinhos de Nacha. Senti
o vômito subir pela garganta. Os globos oculares murchos e com córneas secas
estavam perto de meus pés e só não pisei por sorte. Levantei-me e passei por
ela que virou o rosto de maneira vazia ao sentir minha presença indo para a
cozinha. Era o rosto que me olhava e isso tornava tudo pior. Cheguei até lá,
peguei três sacolas plásticas, coloquei uma dentro da outra, voltei para o
quarto onde ela já se deitara. Peguei os olhos e, de dentro da sacola, subiu o
cheiro de podridão. Só tive tempo de virar a cabeça para a mesma boca de sacola
e enfim vomitar. O cheiro que me abalava era o mesmo que agora entrava pelas
minhas narinas sem opção, causando um ciclo infinito que me fazia colocar a
bile verde para fora. Eu sei que soa nojento escrever isso, mas eu escolhi não
causar sujeira no carpete. Eu já tinha uma filha sem olhos na minha cama. Não
ia vomitar pelo chão também.
Uns três ou quatro períodos depois, de sua testa apareceram seis pequenos
cortes. Três do lado direito, três do esquerdo. Eram mais semelhantes a
arranhões. Suas antigas pálpebras já secavam fechadas sobre as órbitas. Sem os
olhos que estavam caídos na cama para umedecê-los, se tornavam desnecessários. Para
minha desagradável surpresa, os cortes, no fim daquela tarde, se abriram e revelaram-se
olhos enegrecidos. Os novos olhos de Natasha recém-abertos, não pareciam prontos
para guiar minha filha, talvez nunca o fizessem direito mesmo passado algum
tempo, mas ela seguia meus passos muito bem. Desconfiei, após muito pensar
sobre o assunto, que fosse a vibração que a localizasse e confirmei isso ao
roçar minhas mãos no tapete sem nenhum tipo de aviso e lá veio ela saltitando
com as mãos para cima. Achei que fosse me atacar, mas era apenas para me
abraçar. Senti mais dela naquele momento e foi bom ter um acalento no meio de
toda aquela loucura. Fiquei imaginando o que Ursula diria se pudesse ver o que
Nacha estava virando. Ela, com toda aquela inteligência, ia criar mil teorias.
Torci para que estivesse viva e percebi que em meio a tudo aquilo que estava
acontecendo, mal havia pensado nela.
Passado pouco tempo, acho que quatro períodos depois, sua língua se partira em
duas partes. Estavam longas e dobravam como um U invertido. Pareciam
quelíceras. Eram quelíceras, eu tinha certeza. Saíam de sua boca e entravam de
volta por alguns momentos, mas não demorou para que ficassem para fora em
definitivamente. Era assustador, mas eu senti que começara a me acostumar com aquele
novo momento de vida de minha filha. E de certa forma, era o meu momento
também. Era todo dia um acordar diferente. Eu não sabia mais o que esperar ao
olhar para ela de manhã. Poderia virar um anjo com asas ou poderia criar garras
e me dilacerar. Tudo era possível e ao mesmo tempo impossível demais. Era
insólito, mas familiar. Nacha era tudo o que me restava.
Em dado momento percebi que ela tinha fome. Não tive coragem de dar meu peito
com aquela boca abrindo para dar passagem às quelíceras a todo momento. Mesmo
seu comportamento parecia mais instável. Ela, que já não falava muito antes
mesmo do Evento, parecia sinistra em algumas oportunidades com todo aquele silêncio.
Eu observava seus passos pesados que, ao mesmo tempo a desumanizavam ainda
mais, me pareciam tão comuns já que ela fazia isso quando estava irritadiça.
Tive medo. Chamei-a, o que não quer dizer muito sendo que parecia muito mais
ter sentido meus passos para a porta que dava para a frente da casa. Saiu
correndo com suas perninhas para fora e por um segundo torci para que nunca
mais voltasse, mas logo mudei de ideia. Aquilo ainda estava lá no céu. Ela virou
a cabeça para a direita e se aproximou do corpo de Jonah, numa mistura de cinza
e roxo, com a pele parecendo estar amolecendo, imóvel perto da varanda. Se
abaixou ao lado dele, cravou suas quelíceras no pescoço do cadáver e lá ficou
por três horas. Eu me sentia amortizada. Era loucura demais. Deixei a porta
aberta, peguei a espingarda, fui até o banheiro e coloquei na boca. Pus o dedo
no gatilho e quis apertar. Minha covardia não permitiu. Jonah, agora o alimento
apodrecido, tinha sido melhor do que eu até no fim da vida e continuava no
pós-morte. Era tolice viver e isso me consumia por mais que não admitisse.
Cerca de quinze períodos depois, acordei com o quarto ainda trancado. Eu tinha
colocado Nacha para dormir em seu próprio quarto porque estava ficando insólito
demais ver o que ela se tornava a cada manhã. Fui até ela, abri a porta
vagarosamente e senti náuseas ao perceber que todo o lugar estava cheio de
teias em funis. Eu não conseguia entrar. Engolindo em seco, chamei minha filha
e lá estava ela, acima de minha cabeça, sobre a porta, encolhida entre a parede
e o teto. O chão não era mais o limite para ela. Pelos começavam a crescer pelo
seu corpinho nu. Suas pernas dobravam diferente. Com medo, me afastei, mas ela
fez um sinal com a mão. Eu reconheceria os dedinhos agora atrofiados esticando com
esforço em qualquer lugar. Minha Natasha, Atlach-Nacha, num mundo finalmente
livre, queria colo.
Cobrindo-a com uma coberta, mal observei o que a diferenciava do dia anterior.
Queria paz por alguns minutos apenas. O café já havia terminado períodos antes
e era meu jeito de me concentrar no ócio que seriam as horas que viriam
enquanto a olhasse como se fosse uma pessoa estranha andando por aí. Sentei-me
na cadeira tentando segurar as lágrimas enquanto a olhava em meus braços. A
maneira que mexia as pernas era agoniante e os estalos que elas davam só davam
sinais de que as mudanças ainda não acabaram. Refleti por alguns segundos
porque não via essas mutações acontecerem. Talvez fosse apenas durante a noite
que acontecessem. Dizem que a gente cresce enquanto dorme, e era de se pensar
que não fosse tão diferente assim neste caso. Também poderia ser que ela conseguisse
suprimir as mutações para quando eu não visse, mas não me pareceu uma ideia
lógica. Percebi, tardiamente e de maneira óbvia que não era mais apenas pensar
nela o dia todo, mas o isolamento me afetara. Não tínhamos mais internet há
muito tempo, os grupos se dissolveram antes mesmo disso ainda que houvesse os
mais dispostos a lutar pelo nosso planeta, mas com a situação dela, essas
ausências sentidas desde antes ficaram mais pesadas. Sempre me senti diferente
e eles eram uma boa base de sustentação. Eram a escolha óbvia. Ou isso, ou a
morte, me disseram. Nacha não teria que fazer uma escolha assim porque a rua
estava silenciosa havia muito tempo. Mesmo antes do Evento tudo já parecia
assim e fica difícil lembrar se realmente era. Mesmo a Guerra já parecia
passado. Sendo honesta comigo mesma, eles não me pareciam mais alienígenas como
aqueles repórteres diziam. Eles estavam inflamados pelo medo e eu também. Todos
que se preocupassem com seus filhos estavam. Engraçado, não sabia mais dos
filhos de ninguém. Talvez tivesse acontecido o mesmo com eles. Sei que parece
aleatório, mas eu me lembrava, às vezes, do filho de um conhecido de uma das
nossas companheiras. Ela dizia que achava que ele era infiltrado pelos
Reptilianos porque agia diferente. Parecia ser um homenzinho num dia e no outro
parecia uma menininha. Desconfiaram da troca de corpos que o Governo falava no
programa de TV. Tentaram linchá-lo um dia, por um motivo que, pensando agora,
parece bobo. Ele fugiu ferido e achamos bom que ao menos tivesse aprendido uma
lição, que virasse homem em algum momento e desse orgulho aos seus pais e a
todos nós que batalhávamos por crianças como ele para que tivessem um futuro
melhor. Um depravado, ela dizia. Se fosse realmente humano, não teria mais do
que 13 anos. Me incomoda dizer isso, mas talvez, ao ler esta palavras, seja
você quem for, já não faça diferença: Nesse momento, espero que ele seja como
Natasha e tenha tido oportunidade de não morrer nas mãos de ninguém. Eu não
tive coragem de matá-la enquanto dormia tantas vezes, agora não parecia justo
que fizessem o mesmo com ele.
Fui interrompida nos meus pensamentos ao sentir dor com suas mãos me apertando
forte. Ela ficou impaciente de novo. Levei-a para o corpo de meu falecido
marido na esperança que isso resolvesse, mas ela se negou. Subitamente, andou
de quatro com movimentos cuidadosos. Pés e mãos no chão e percebi que seu tórax
estava menor, como se estivesse se unindo à bacia. Se rosto se tornava
suavemente mais isósceles. Seus cabelos rareavam. Ela ficaria careca e tudo o
que importava era comer. Cobri-a com a coberta novamente, coloquei em meus
braços e fui até a casa de Ursula. Se tivesse sobrado algo de Rouxinol,
provavelmente serviria. Tentei ignorar ao máximo a presença do Evento no céu,
porém era impossível não tremer com os sons que aquilo propagava. Eu não
enlouquecia com aquilo, provavelmente era imune, acho. Mas não quer dizer que a
vista sideral não se tornara perturbadora. Eu tinha muito medo de olhar para
cima. Qual era seu tamanho? Talvez 300 Km? Mil? Eu nunca fui boa em medir essas
coisas só de olhar. Apenas parecia grande o suficiente para que ninguém pudesse
se esconder. Em algum momento todos nós o veríamos no céu, brilhando e
esperando sua oportunidade de destruir nossas vidas.
Ao chegar lá, bati na porta dela. Tudo parecia abandonado do lado de fora. A
grama estava alta, o banco que sentávamos nos tempos antigos estava quebrado.
Ou ela morreu, ou Rouxinol escapou ou...
Les, me chamou uma voz fraca ao abrir a porta.
Ursula! O que houve com você?
Eu não sei. O que houve comigo?
Ela parecia fraca. Seu corpo estava mais magro, as olheiras marcavam o rosto.
Nacha se mexeu impaciente sob o pano que a cobria. Adorava Ursula, mas amava
minha filha. A escolha era óbvia.
Posso entrar?
O que é isso?, apontou para o cobertor em meu colo. É Natasha?
Você viu o que está no céu?
Sim. Nós vimos. E espiei pelo vão da porta.
Ele ainda está aqui?
Ela se chama Angela.
Ele ainda está aqui??
Ela.
Ela. Respirei fundo.
Entre.
Melhor não., disse antes de dar um passo para trás pensando na fome de Nacha.
Não a vi furiosa na nova forma, mas se fosse agir parecida com o formato que
assumira, seria melhor mantê-la longe.
Natasha olhou para aquilo?
Sim. Jonah também. Ele se matou.
Lamento., disse Ursula sem emoção na voz. E esta menina, o que houve com ela?
Ela mudou. Talvez seja melhor eu ir embora. Achei que tivesse comida para ela
aqui.
Não tenho comida nem para mim. Angela se recuperou, me ajudou depois do Surgimento.
Ela vai embora hoje. Precisa encontrar sua família.
Eu vou trazer algo para você.
Eu não quero sua ajuda.
O Governo caiu, Ursula.
Agora que você percebeu?, era rancor em sua voz.
Me perdoe.
Angela me perdoou. Ela até me ensinou sobre como eles vivem bem a oeste daqui. Nunca
descobrimos porque ficamos entrincheirados. Somos ignorantes e esquecemos que
todos somos humanos. Acho que vou com ela.
É direito... É direito seu.
Cansei de negar quem sou. Você não?
Eu sou mãe, Ursula. Não posso me dar a esse luxo.
Pelo que vejo na perna da Natasha, você já negou muita coisa.
Venha comigo. Me ajude com ela. Por favor.
Les, sua filha está além de qualquer ajuda. Ou você abraça a vida sob aquele
monstro no céu, ou você volta a ser aquela pessoa antes do Governo.
Aquilo me atingiu como um murro. Ela estava certa.
Eu não tenho coragem.
Ursula me olhou fixamente. Mesmo fraca, conseguiu um último esforço. Abriu mais
a porta, saiu. Colocou a mão em meu ombro, se aproximou de meu rosto e me deu
um último momento de silêncio.
Então adeus, Alessia.
Ela fechou a porta devagar, me observando até o final. Nunca mais vi Ursula.
Nunca mais me vi também. Apenas abracei Nacha e voltei parte do caminho. Após
um tempo, soltei Nacha do meu colo e ela foi para perto de uma árvore. Subiu e
a perdi de vista. Eu a esperaria em casa, caso voltasse. Deduzi que minha filha
precisava caçar. Deixei ter sua privacidade. Fui ter com a rua deserta. Caminhando,
vi um casal. Não era um casal qualquer. Eram os Imorais. Dois homens. Mãos
dadas. Estavam de bonés e não olhavam para o céu, apenas para si mesmos e riam.
Me viram e não fugiram, tampouco me atacaram. Estavam desarmados e sem roupas
de batalha. Apenas me ignoraram. Enfim a guerra havia acabado, então. Me senti
suja. Eu havia me negado para sobreviver, mas o que havia me tornado em troca?
Por isso hoje estou aqui escrevendo estas palavras. A verdade é que acordei
mesmo disposta a acabar com tudo. Nacha voltou de madrugada dois dias atrás, depois
de muito tempo fora. Não sei precisar o quanto, desculpe. Derrubou coisas na
cozinha e estava com uma gata presa, porém viva, e deu trabalho mesmo emaranhada
nas teias que seu algoz fez pela casa, mas não escapou de seu destino cruel.
Nacha a devorou e o miado sôfrego que ouvi foi um aviso justo do que viria. Eu a
vi em sua refeição quando saí vagarosamente, sabendo dos riscos de encontrá-la.
Lá estava minha menina. Haviam mais pernas pelo seu torso. Sua boca foi
para entre os pedipalpos ensanguentados e seus pelos cresceram ainda mais.
Havia se tornado forte, delgada, sibilante e ansiosa por comida. Percebi quem ela era depois de tanto tempo
sozinha e eu percebi que minha filha não existe mais como conheço. Se tornou
filha do Evento. E mesmo assim, ainda é minha filha. E devem haver outros como
ela neste mundo, mas não estarei aqui para testemunhar nada disso. Cabe a você a partir daqui. Ursula se foi, mas eu havia ido muito tempo antes. Ela
suportou, mas eu não consigo suportar. Jonah hoje é resto de alimento, uma
carcaça vazia como sempre foi. E eu me tornarei isto também. Nada mais justo. E
ela está à porta. Ela roça as patas. Ela não força a entrada. Ela quer que eu
abra. Me espere, minha princesinha! Em minha despedida, caso algum dia alguém
leia essas páginas, resta-me pedir isto: Deixem Nacha ser Nacha neste mundo decadente que tem
uma chance agora que nos tornamos objetos raros. Não a matem, por favor. E se Ursula
estiver bem, digam a ela que sinto muito.
Voarei agora nas teias da morte. Serei eu a Rouxinol presa. Mas esta,
sim, mereceu morrer.
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