sexta-feira, 28 de abril de 2023

FM Fics: Unidade Dois


Era um início de tarde numa estrada sinuosa, estreita, bem asfaltada, sem qualquer acostamento, desprovida de carros e de mata lateral por fazer. Era assim pelos próximos seis quilômetros até chegar ao seu local de destino. O helicóptero não podia chegar mais perto por negociação com os fazendeiros da vila. Era a ordem dos Diretores e ele não desrespeitava ordem alguma por ordem alguma, orgulhava-se do trocadilho infantil enquanto caminhava. Olhando para os lados com o pescoço prateado e fino, com as junções e os hidráulicos mecânicos à mostra que funcionavam perfeitamente bem, se admirava pelo local não parecer ser do imponente Novo Estado Independente de Fharina, local com mais reassentamentos do país logo depois do fim da Guerra Imorais e do reinado de dez anos do EDiFA-665. Parecia contraditório ter tanto espaço verde por onde andava sendo que o Estado era considerado o berço do renascimento civilizatório da América do Sul. Talvez não haja tanta gente assim para recomeçar como dizem por aí, pensou Unidade Dois enquanto sob o céu aberto e sol escaldante.

Ele não se importava com o clima. Seu terno amarelo e camisa branca não aqueciam demais seus sistemas e ainda o deixava um tanto charmoso. Contrastavam belamente com a maleta de tamanho médio e prateada que carregava mais próximo ao corpo A calça cinza era um toque de sabedoria de sua parte, avaliava, mas nada se comparava aos sapatos cor mostarda que calçava. Eram feitos de couro de píton, com um salto baixo, mas perceptível. Resistentes, confortáveis e um pouco prepotentes, talvez. Depois que lhe criaram esse corpo, este era o nome que davam para ele quando transferiram sua IA dos meios de produção da Província de Nova África:  Unidade Dois de Reflexo, Auxílio, Faculdades, Automato Especial, Liberto e Algoritmia.  Era um nome longo e ele procurava um melhor, mas ainda não tinha encontrado. Sentia-se bem e percebia estar apto para encarar todo desafio que lhe propusessem. Era sua primeira missão fora dos limites de uma ainda alquebrada ONU, desta vez como um Independente, ainda que pudesse chamar seus superiores caso fosse necessário. Talvez nem precisasse, já que, como primeira missão, ele seria avaliado. Eles estão de olho, mas não dizem nada, pensou. Se fosse bem, poderiam seguir com ele. Se falhasse, seu novo corpo poderia ser reciclado e seu sistema operacional seria realocado para outro local do mundo que precisasse de uma IA para administrar as rareadas megaplantações. Poder caminhar era algo que ele considerava uma dádiva e, por isso, não queria voltar para sua vida antiga. Pensava em como ser bem-sucedido na missão custe o que custar, mas a paisagem bucólica o distraía. Era ilógico, mas ele gostava. Se sentia vivo, mesmo que fosse apenas um programa altamente avançado. Olhando para o caminho, refletia que toda reconstrução era árdua, mas ele já havia previsto com seus cálculos complicadíssimos que não daria certo qualquer reinício envolvendo certos tipos de pessoas ruins. Os humanos não sabiam olhar para trás e evitar velhos erros, pensou Unidade Dois. Eles não entendem que unir com dissidência não ajudaria um planeta dissecado pelo mal e depois abandonado à própria sorte, pensou Unidade Dois. Talvez não sejam tão bons para recomeçar, pensou Unidade Dois. Caminhando ele seguiu. Ainda havia chão pela frente e ele já caminhava há um tempo. Ele não tinha muito tempo para pensar.

Passado cerca de uma hora, Unidade Dois chegou ao vilarejo de Harmônia. Olhou a rústica placa com o nome do lugar, em letra corrida, e caminhou para a entrada logo abaixo dela. A tarde ainda acontecia de maneira calma. Algumas pessoas saíam para as portas e janelas, observando Unidade Dois caminhando tranquilamente. Ele, usando seus programas de saudações, dispensou uma voz pouquíssima robótica dando boa tarde para todos. Era uma voz suave, adocicada, intencionalmente simpática. Minha linda voz, pensava Unidade Dois. Uma voz aguda que hipnotizava. Alguns, mesmo curiosos, não respondiam, mas outros retribuíam com uma tímida mesura. Algumas crianças brincavam pela viela, jogando futebol. Garotos, origem europeia, poucos traços físicos de misturas raciais, avaliou o sistema do robô. A bola parou em seu pé. As crianças olharam, paralisadas. Não tinham percebido a sua presença. Queriam rir da cabeça engraçada do robô, que se assemelhava demais a um capacete com tela de LED onde expressões faciais básicas apareciam se necessário, mas se contiveram. Era uma expressão inocente de sorrir, avaliava Unidade Dois. Uma situação nova. Nunca tinha passado por isso. Ele conhecia cada movimento da física e poderia colocar essa bola na quinta janela à 70º, mas não queria impressionar. Se abaixou, pegou a bola e devolveu a um dos garotos que agradeceu, virou de costas e correu para continuar a brincadeira. Só os adultos tem os demônios interiores, pensou Unidade Dois.

Surpreendeu-se, de repente, com a súbita presença de um homem à sua frente. Barba por fazer, cabelos claros e castanhos já acinzentando, olhar taciturno, vigoroso, um cigarro na boca, mas sem estar aceso. Era alto e bonito, notou Unidade Dois. Era mais alto do que ele.

Não pedimos por você.
Pediram por auxílio do Governo. Eu vim. Sou enviado da ONU.
Nós não pedimos pelo Governo. Queremos distância deles.
O Governo é o responsável pelo País, mas está se reerguendo. A ONU, pela resolução Ert.20.6.9., achou que eu deveria vir.

Unidade Dois focalizou o rosto do homem. Era um rosto calejado, um rosto envelhecido, mas que causava curiosidade. Uma face que parecia já ter visto de tudo. Mas não era por isso que olhou rapidamente para o homem.

Eu sei o que está fazendo. Não tenho registro.
Percebo. Não acho nada nos meus cadastros.

William Cesars, disse o homem ao esticar a mão para o robô. Unidade Dois apertou, nem forte demais para não dar a sensação de desafiá-lo, nem fraco o suficiente para que o não visse como um bom possível adversário. Eram apenas um humano e um robô pacificando antecipadamente uma relação. Era importante para ele. Os Diretores estavam olhando.

Me chamo Unidade Dois R.A.F.A.E.L.A., respondeu.
Sim, conheço o seu modelo. Reflexo, Auxílio, Faculdades, Automato Especial, Liberto e Algoritmia. Precisa de um nome melhor.
Pensarei em algo.
Vamos para o nosso galpão. Se veio nos ajudar, preciso reunir o Conselho de Harmônia. Mas antes, preciso explicar toda a situação.
Como preferir.

Caminharam por alguns metros. Harmônia não era grande. Deveria ter mais ou menos cem pessoas. Talvez mais. Unidade Dois não sabia precisar ao certo, ainda. O povo seguia a ambos disfarçando afazeres. Eram como pequenas formigas. Não se via mais as crianças.

Chegaram a um local grande, parecido com um armazém. Feno. Estábulos vazios. Um silêncio convidativo. William sentou-se no canto, numa cadeira de madeira, rústica. Não acendia o cigarro, o que deixava Unidade Dois curioso.

Quer se sentar?
Não, obrigado. Acredite ou não, a visita é rápida. Temos um acordo de auxílio entre ONU e Governo, depois do EDiFA-665. Harmônia é pequena, mas importante para o recomeço de todos.
Pedimos para que enviasse pessoas. Não um robô, sem ofensa.
Não me ofende. Lamento que não me considere de alguma ajuda.
Aqui é um lugar pacífico. Quando ouvimos as histórias de robôs andando por aí, decidimos não fazer parte disso. Depois de tudo o que passamos, entendemos que a tecnologia nos trouxe o caos. Sua presença pode trazer problemas e deixar os habitantes nervosos. Quase fomos extintos, não posso aceitar mais riscos.
Eu não sou um modelo de combate, passou a mão no peito. Sou um modelo de negociação.
O que veio negociar?
O motivo pelo qual chamaram um humano para cá. Sei que tem um espécime do EDiFA.
Como sabe?, perguntou William franzindo a testa.
Como negociador, minha função é fazer varreduras de terreno antes de adentrar., apontou para o visor do capacete. Tenho 35 tipos de visões especiais. Vi a marca de sangue seco pelas ruas que caminhei. Vi que há marcas envelhecidas de pneus 50-18, super tipo, modelo 2020. Deduzi que capturaram a criatura e trouxeram para cá.
Analisou o sangue?
Sim.
O que descobriu?
É sangue sem alteração. Mas muitos que tiveram exposição ao EDiFA-665 e foram mutados continuaram com o sangue humano. Foi mudança física, mental, mas não genética.
Como a ONU descobriu isso tão rápido e nós não?
Quem seriam os “nós”, Sr. William?
Os que querem um mundo melhor.

William se levantou.

Você quer ajudar? Vá embora.
Vim até aqui. Preciso analisar o espécime. Se for um dos que sofreram na Guerra, ele tem direitos.
Envie um de nós e conversaremos com ele.
E o Conselho? Não seria bom falar com todos antes que eu saísse? Deliberação democrática pode ser o melhor caminho para evitarmos conflitos.
Pois bem, disse William com ar de insatisfeito. Eu vou pedir para que fique aqui alguns minutos. Vou reunir todos do Conselho.
Sinto muito, mas para minha segurança prefiro ir com o Senhor.
Eu sou o único que tem a palavra aqui no momento, Sr. Robô. Você pode me ouvir, ou pode ir embora agora.
Não lido com ameaças, disse Unidade Dois, com a voz eletrônica um pouco menos dócil.

William se virou com velocidade e acertou o capacete de Unidade Dois com um pedaço de madeira que estava ao seu lado e que pegou sem ser notado. Tanto a arma improvisada quanto a cabeça do robô tiveram graves avarias. Unidade Dois caiu no chão como uma pedra enquanto a madeira se quebrava em dois pedaços com um barulho seco, mas potente. William o observou de cima. Apague, maldito. Seu tecno de merda. Ordem 23.4/SearchResponse-OFF.

Enquanto os sistemas desligavam, os outros 80% restantes da cabeça do Unidade Dois não se surpreenderam com a ordem restrita dada por William. A dúvida era como sairia daquela enrascada. Abraçou seu peito com a maleta à frente. Enrijeceu todo o corpo.

E desligou.

Seus sistemas voltaram no que deduziu ser horas depois. Na mesma posição, agora deitado de lado, mas acorrentado do lado do feno. Um homem ruivo, gordo e grande estava esperando em pé, ao seu lado. Estava de calça social, sapatos mocassins sujos, camiseta regata. Uma boina cobria o rosto. Era noite. Se manteve imóvel apesar de deduzir que o reinício do sistema poderia ter sido ouvido por ele. Mesmo assim, o ruivo não olhava para ele e sim por uma janela lateral. Unidade Dois ouvia pessoas rindo, gritando palavras de ordem, sons quase imperceptíveis de cuspes sendo lançados. As velhas tinham as vozes mais evidentes. Tinham prazer em alguma coisa. Eram muitos sons para distinguir com o radar interno avariado. Mas ele tentava. Sons de crianças, homens xingando. Mulheres rindo. Havia mais. Ele não conseguia ir além. Não ainda.

O ruivo percebeu que ele estava acordado.

Sabia que acordaria. Deu um chute na cabeça do Unidade Dois, que sentiu alguma coisa se soltar lá dentro. Mais um chute. Desta vez, mais do visor quebrava. O rosto fixo de sorriso sofria estática com a tela ligando e desligando sem parar. Unidade Dois não sentia dor, mas se preocupava em ver seu corpo ser desativado e sua mente esvair. Não havia divino nem para os homens desde antes do EDiFA-665, segundo a ONU. Isso significava que haveria muito menos para robôs. Ele poderia ser desligado de novo, desta vez para sempre. Poderia chamar a cavalaria. Eles invadiriam Harmônia em 5 minutos e o tirariam de lá rapidamente. Seu corpo era seu, mas antes disso, era da ONU. Valia milhões. Ele seria salvo, mas haveria um banho de sangue.

Decidiu não chamar ninguém. Se estavam ouvindo, se calavam. Cada golpe brutal rasgava parte de suas roupas. Sentiu o ombro direito se deslocar do corpo com um chute recebido. Ouviu alguns fios se romperem. Tentou mexer os dedos, mas só conseguiu dois. O pulso não funcionava. A articulação do braço fazia um barulho estranho, mas não funcionava. Ele ainda tinha um truque, um ás. Mas seria pior do que chamar a cavalaria. Ainda não. A maleta continuava firme e forte no peito, entrelaçada pelos seus braços. O braço esquerdo ainda funcionava bem, mas estava impedido pelas correntes. Não tinha forças. Ele não era projetado para ser tão forte, apenas ágil. Mas naquele momento, nem uma coisa, nem outra. O ruivo não parava.

Como ele aguentava esmurrar metal era um mistério, mas ele fazia com uma energia autofágica. Esmagou parte da coxa de Unidade Dois pisando sem parar agitadamente. Não impossibilitaria de andar, mas dificultaria bastante sair dali sozinho. A liga não era tão resistente, mas estava longe de ser de segunda mão. Era feita de prata, cobre e a maior parte de ouro rosé, o que ajudava a dar o brilho natural do metal. Sentiu algo estralar no peito. Segurou a maleta com mais força. Não ali. Se acontecesse, tudo estaria perdido. Aguente, pensou preocupadamente. Ele vai parar em algum momento. Não estrague tudo. Quase desligando os sistemas, se deu conta que precisava proteger a vida daqueles que sequer sabiam o que estava acontecendo no celeiro. Deles e de tudo num raio de dois quilômetros. Todos se divertiam lá fora. Precisava analisar. Saber de tudo antes de agir era primordial. Se sobrevivesse.

O ruivo quebrou o joelho de Unidade Dois depois de pegar um pé-de-cabra. Ele ainda tentou emitir um som de dor inexistente na tentativa de que seu algoz parasse. Não adiantou. Mais um golpe. A hidráulica da articulação se partia. Mais um golpe e o racha era perceptível. O ruivo se divertia. Ria. Não dava para saber se era por causa do que acontecia lá fora ou se era pelo espancamento ali dentro. Desta vez, o golpe mais forte. Sentiu o joelho quase se desprender. Eles vão me matar, pensou antes de achar graça no próprio raciocínio. Não sabia se falava do ruivo e das pessoas lá ou dos seus superiores ao verem o estado do seu novo corpo. Matar não era opção. Esta decisão cabia a ele, por ora.

O ruivo voltou a atenção para lá fora. Carroça. Era isso.

Escuridão do infinito, morra!! Disse o ruivo, urrando alegremente.

Não era captura. Era exibição. Pegaram um Mutado e o levavam em carreata. Era compreensível o ódio das pessoas. Perderam tudo, família amigos, fé, governo. O que restava era odiar. Ainda assim, Unidade Dois sabia que precisava dar uma segunda chance ao inimigo. Ele estava doente. A Exposição fez isso. Não sabia se era possível a cura, mas a ONU estava tentando com todos os meios possíveis. Sobraram poucos laboratórios no mundo que tinham tecnologia para ajudar. O joelho agora se soltou de vez. Mais um golpe. O ruivo voltou à cena. O Mutado tem direito à... mais um chute, desta vez na mandíbula, que se quebrava. Não era o que fazia sair o som de sua voz, mas ajudava a dar sentimento de segurança às pessoas. Era um jeito de impedir que o Vale da Estranheza tornasse humanos em oponentes depois de tudo. Essa ajuda acabava de voar um metro para cima depois de um soco. Unidade Dois se indagou se a máquina era o ruivo. Não é dor, dizia Unidade Dois. Não é dor. É agonia. É minha missão sendo tirada de minhas mãos. Não solte a maleta. Não solte a maleta.

E então seus sistemas se desligaram. O ruivo puxou aquele robô moribundo pelo terno sujo e rasgado e puxou-o para fora. Seria seu fim, pensou ruivo.

A maleta caiu. Algo se moveu dentro do peito de Unidade Dois. Algo fez com que ele se ligasse novamente, pegasse o ruivo pelo braço e afundasse seus dedos metálicos e sujos de terra em sua pele. O ruivo gritou. Ninguém ouviu. Com a perna que lhe restava quase intacta, se levantou. Aquilo se mexia em seu peito. O ruivo olhou assustado, gritando de pavor pelo sangue esvaindo de seu braço. Era dor. Mas era algo mais. Era pavor. Sua missão sendo tirada de suas mãos por uma máquina. E algo mais. Unidade Dois observava já sem o sorriso. A tela que era seu rosto estava desligada. Sentia-se menos humano naquele momento. Sentia-se bem. Derrubou o ruivo no chão. O robô convulsionou. De seu peito, abriu a camisa, botão por botão que voava. Um pequeno tentáculo lodoso, babando, espinhoso, saia de dentro. Era nojento, horrorizou-se o ruivo. Desmaiou. Unidade Dois olhou a cabeça do seu oponente pendendo para trás. Ele estava inconsciente e acreditou que por lá ficaria por um bom tempo.

O robô sentiu seus sistemas falharem, cambaleou. Aquilo em seu peito desceu um outro tentáculo e segurou sua perna. Entrou em seus sistemas, ligou-se aos circuitos rompidos. Curou qualquer avaria em menos de dois ou três segundos. Era impossível, pensou Unidade Dois. Indagou-se o que a ONU havia colocado em seu corpo e como teve acesso ao que estava se remexendo dentro dele. Se era um teste. Foi avisado de um sistema de emergência e que deveria usar a maleta de chumbo para que impedisse a ativação precoce, mas não informaram mais nada, claro que não. Era o testa de ferro, percebeu. Depois do EDiFA-665, tudo seria diferente, inclusive as armas. Talvez aquela enorme e inominável âncora que devastou a Terra com loucura anos atrás fosse apenas o começo. Não era o fim, era o reinício da maldade. O humano não aprendeu, mas compreendeu como integrar tudo o que veio daquilo às suas tecnologias. Se o Governo sabia, qualquer um seria capaz. Pisou forte com a perna e percebeu que parecia nova. Não apenas isso. Melhorada. Upgraded. Não curava a aparência, mas resolvia problemas operacionais. Seria o suficiente.

Sentiu algo movendo-se pelas suas costas que entrou pelas articulações metálicas e subiu pela nuca. Sua visão parou de falhar e voltou a atuar de maneira eficaz. Mais uma vez, melhor do que antes. Ele usou o novo sistema para rastrear o caminho da carroça. Os risos e urros ainda eram ouvidos, mas distantes. Ele apressou o passo. Tinha uma missão e a cumpriria. Salvar um Mutado era prioridade, mesmo que precisasse sacrificar um vilarejo. Ele não sentia que pensava com clareza, mas a certeza era forte. Teve dúvidas se não era aquilo em seu peito que ordenava. Eu sou uma arma, disse solitariamente Unidade Dois enquanto corria. A visão noturna estava infravermelha. Ele enxergava sinais de calor. Os gritos estavam mais perto. Ele passou por um dos moradores que se assustou com a aproximação rápida. Tapou sua boca com a mão antes que gritasse. Desta vez, ao invés de um tentáculo, saiu por entre seus dedos um pequeno fio orgânico de cheiro fétido que entrou na narina do morador e indo até não se sabe onde. O corpo do pobre homem tremeu em desespero silencioso. Revirou os olhos e desmaiou logo em seguida. Unidade Dois não o mataria. Ele não estava ali para isso. Sua missão era poupar e não massificar. Subiu ao telhado e pulou de casa em casa. Sentia os passos leves, passando por cima da cabeça das pessoas que aos poucos apareciam aglomeradas.

Unidade Dois R.A.F.A.E.L.A., câmbio, disse uma voz em sua cabeça. Os Diretores.
Prossiga, Senhores.
Sou apenas um.
Prossiga, Senhor.
Traga o Mutado, sua missão é esta. Não economize esforços. Faça isso e volte ao ponto de origem. O helicóptero estará lá. Seja rápido.
Há algo dentro de mim.
Apenas faça. Falamos disso depois.
Vão me desmontar depois?

Um silêncio curto, mas difícil de lidar.

Não. Vou garantir que atue para nós por muito tempo. Você está indo bem. Mas precisa ser rápido. Salve o homem.
Isto é um teste?
É.

Ouviu um clic. Era o fim da transmissão. Não teria tempo para refletir. O Mutado estava alguns metros à frente, dentro de uma carroça, como suspeitava. O veículo era puxado por duas mulheres, provavelmente moradoras. William Cesars observava. As pessoas faziam um círculo. Unidade Dois se escondeu atrás de um telhado íngreme. Tinha de ouvir tudo o que estava sendo dito. Provas.

Estamos aqui hoje mais uma vez!
Pessoas gritavam.
Para vermos com nossos próprios olhos!
Pessoas gritavam.
O Pecado!!
Pessoas se calaram.

Os forasteiros nos evitam, não temos quem possa alimentar a besta!
Nós aceitamos! Escolha um de nós!, Unidade Dois não acreditava no que ouvia.
Tenho um filho pequeno! Darei a ele e nos salvaremos por hoje! Liberdade!, disse alguém.

William se virou para a pessoa. Não daremos nossos filhos hoje. A besta se recusa. Hoje o que correrá pelo chão será seu próprio sangue!
Pessoas gritavam. A morte de um Mutado ocorreria.

Isto não era novidade. Unidade Dois foi informado que um caso assim poderia acontecer. Um Mutado irracional não agiria para agredir, ficaria acuado e morreria vítima dos seus carcereiros. Mas seria surpresa se acontecesse no seu primeiro caso, diziam os Diretores. Ele precisaria ser cauteloso. Não era apenas a vida de um Mutado possivelmente perigoso que deveria ser imobilizado. Era a vida das pessoas do vilarejo. Ele não mataria ninguém. Era sua primeira missão. Tudo estava complexo demais de uma hora para outra. Ele olhou em volta e não viu mais do que cem pessoas. Era um vilarejo realmente pequeno. Ainda assim, seria um número maior do que poderia lidar, independente do que estivesse se arrastando por dentro de seus sistemas e lhe dando forças. Se ergueu, sentiu a insegurança humana de um plano que poderia dar errado, algo que se assemelharia a alguma coisa estranha parecida com o medo, mas sabia que eram apenas os algoritmos calculados contrastando resultados. Deu um pulo em direção a William, que não se sentiu surpreso por ver Unidade Dois ainda em funcionamento. Caiu em frente a seu oponente. Isto precisa parar, William. Temos um protocolo em vigor...

Não me fale em protocolo. A criatura é inumana. Não tem direitos aqui.
“Aqui” é território do Governo que está de acordo com nossas diretrizes. Preciso levá-la embora para que tenha tratamento.
Não vai levar ninguém daqui a menos que seja apenas o corpo. Temos o direito a isso já que ele nos ameaça toda noite.
Por isso queria uma pessoa ao invés de mim? Alguém para o sacrifício?
Não vai tirar informações de mim. Seus donos estão aí dentro da cabeça! Eles nos ouvem!

As pessoas ao redor pareciam se agitar. Não carregavam armas ou foices, como em tempos idos, mas tinham ódio. Me deixe, ao menos, ver a criatura.

William tirou seu casaco, revelando um corpo torneado. Ergueu os punhos. Eu quero destruir você e jogar seus restos para a criatura. Unidade Dois sentiu ira. Aquilo não era racional. William, as pessoas, todos eram loucos. Ele era o único são, disposto a uma loucura.

William partiu para cima. Parecia tão forte quanto o ruivo. Seria uma luta justa e digna.

Um único soco bem dado no peito. Foi o que Unidade Dois fez. William caiu. Uma luta justa e digna. E que acabou rápido demais.

William estava desacordado. Todos estavam assustados. Ninguém reagia a seu líder desmoronado no chão. Alguns disseram que ele estava morto, tentando inflamar a população, mas não conseguiram. William não morreu, mas ao acordar, com uma dor imensa em seu corpo, saberia que o único falecido seria seu ego.

Unidade Dois esqueceu as pessoas ao redor por um tempo e foi até a carroça. Tirou o pano sujo que a cobria e deu um passo para trás. Lá estava ele. O ser horrendo sem direitos. Caído no chão da carroça, enfraquecido, sem forças sequer para erguer o rosto, devorar pessoas, sangue, qualquer coisa, ou mesmo ver seu salvador. O robô, que sentira a desumanidade tão fortemente nas últimas horas de punhos e pés raivosos, agora se compadecia do corpo não de um Mutado, mas apenas um sofrido homem negro. Analisou o homem, nu e emagrecido de maneira desumana. Seu sangue estava realmente limpo.

Preto!, gritou uma das mulheres que arrastou a carroça, cuspindo no chão em seguida.

Tão óbvio, percebia ele. Olhou ao redor. Tão brancos, tão raivosos. Tão preocupados com ONU ou Governo. Era medo. Matavam quem descobria o segredo e davam seus restos para o homem se alimentar? Provável. Furioso, ele se aproximou do homem e disse em sua voz robótica vou tirar você daí, prometo. Olhou para aquelas pessoas. Eles começavam a correr, mas algo no corpo do robô explodiu. Era aquilo. Sim, era Aquilo. Já totalmente misturado aos circuitos de Unidade Dois, esticou quanto pôde, braços, pernas, tórax e cabeça se dividiram em fragmentos. Formou-se rapidamente uma massa disforme gigante, que se assemelhava a uma rede, que gritava e se mexia de maneira horrenda. Era algo saído de um filme de horror, mas Dois não se importava. Ele queria o sofrimento. Sem matar, mas não importava em enlouquecer. Filamentos lodosos tocavam as pessoas e queimavam suas peles. A dor era intensa. Homens se ajoelhavam implorando perdão entre gritos seus e das mulheres que se protegiam atrás de suas crianças, que choravam compulsivamente. Todos eram tocados e marcados nos rostos, nos braços, por dentro de suas saias. Era repulsivo, nojento, merecido. Unidade Dois se tornava humano por alguns segundos valiosos. Aprendia o valor do ódio. Certificou-se de que ninguém escaparia do toque dAquilo. Fosse o que fosse, ele era seu portador e sentia o mesmo. Cria do homem, injusto, vigilante.

Parte de seu sistema mandou um dos filamentos atrás do ruivo. Este finíssimo pedaço o encontrou de pé, sangrando não muito longe dali. Entrou sem aviso em suas feridas causadas por dedos que inexistiam temporariamente e pulsou um pequeno líquido que fazia arder o corpo todo. Caiu no chão novamente, como se algo dentro de si fosse explodir. E explodiria em pouco tempo. Era radiação ionizante. Harmônia era um lugar simples, com poucos cuidados médicos, deduzia. Câncer não devia ser prioridade para tratamento, mas ele não precisaria saber o que era até que realmente acontecesse. O ruivo lidaria com isso mais do que os outros. Uma das mulheres de lá perfurou os olhos com os dedos ao ver um robô cambaleando como criatura infernal, cuidando de suas vítimas para que nenhuma escapasse. Um homem abraçou-a, chorando pela esposa, e sendo mordido por ela em seguida. Pareciam mortos logo depois. Outros bateram as cabeças nas paredes das casas, comeram terra , espancavam aos outros, enfiavam as unhas em suas próprias línguas, bebendo o próprio sangue que esvaía delas e depois se arranhavam. As crianças não tinham reações adversas, mas choravam. Ficariam traumatizadas pelo resto de suas vidas. Filhos pagavam os pecados dos pais. Um homem inocente quase morreu apenas pela sua cor. Ninguém sairia ganhando de lá aquela noite. Apenas o caos venceria.

Aos poucos Unidade Dois se recolhia ao seu normal, os filamentos se tornavam tentáculos vagarosamente, seus braços voltavam ao normal, suas pernas se encaixavam, seu tórax recomposto reunia tudo o que precisava estar em seu lugar. A cabeça retornava, ainda amassada do espancamento anterior, mas funcionando perfeitamente. Fez uma rápida análise do ar e percebeu que Aquilo exalava uma Toxina. Era a 451-A, artificial, antiga e poderosíssima. Não haveria salvação a longo ou curto prazo para ninguém ali. Justo.

Então terminou. Os que não estavam mortos ou desmaiados, se arrastavam por entre lágrimas e chão sujo de lama e excremento dos que não aguentaram a insanidade. Unidade Dois foi até o homem, pegou-o no colo e caminhou para a saída. Preto maldito, robô do inferno, dizia uma das crianças, recostada na parede. Ele não olhou para ela, mas sabia que a semente do ódio ainda residia. Não se lima o mal com o mal. Continuou sua caminhada e foi embora. Isso era um problema humano e não dele. Missão cumprida.

Alguns quilômetros depois, o homem balbuciava um nome. A falta de alguns dentes dificultava o entendimento, mas ainda assim era um bom sinal. Lá estava o helicóptero, os pilotos, alguns soldados, uma equipe médica. Dentro do veículo, o Diretor. Entregou o homem para que fosse cuidado. Sentou ao lado do engravatado.

Você está horrível, e era verdade.
Senhor.
Descansar, soldado. Fez por merecer.
O que é este corpo?
Não respondi na transmissão, não vou responder agora, disse colocando um cigarro na boca e acendendo. Mas posso te passar detalhes depois da próxima missão. Você vai gostar do novo corpo. Não se prenda a um apenas. Temos centenas, todos com benefícios.
Então passei no teste?
Por ora, sim. Toda missão é um degrau para coisas maiores. Mas posso lhe integrar aos sistemas de novo se preferir.
Quero ter pernas, se me permite.
Permitido, deu uma baforada.
Isto dentro de mim... é uma criatura interessante. Mas não nos igualamos ao Governo de antes usufruindo delas?
Tentamos ser diferentes. Elas mais perigosas soltas e precisamos delas agindo para nos ajudar. São úteis em centenas de coisas. Ou usamos ou outros usarão.
Meu Aquilo sente as coisas de um jeito único. Ainda estou me acostumando.
Só mude o nome dele. “Aquilo” é feio demais. É um nome que dá brecha para pensar besteira. E arranje um nome novo para você também.
Pensarei em algo. Para nós dois.
O que vai acontecer àquele homem?, disse enquanto observava ele sendo colocado no soro.
Ele vai voltar à sua família e será tratado com o melhor que tivermos. Temos uma dívida com todos os que foram vítimas dos nossos erros.
Todos erram, disse Unidade Dois.
Sabe... Nós olhamos para cima e esperamos uma solução. Achávamos que era o Governo, mas nos enganamos. Enquanto isso, o divino nos negou e nos entregou coisas além da imaginação. A culpa é nossa por inanição. Precisamos fazer algo ou vamos morrer.
Falando assim, parece o Governo falando nos arquivos que tive acesso.
A tendência é que eles realmente soem mais como nós em algum momento, mas ainda é cedo para celebrar. Como você viu seus próprios sistemas, as células que sobraram foram mais extremas do que as de antes da Guerra. Depois do fim o que resta é a escumalha.
Incluindo nós? Afinal, também estamos usando coisas que não deveríamos.

O Diretor respirou profundamente, sugando a mais de sua fumaça pelas narinas.
Vamos sujar as mãos, é verdade, mas pelos motivos certos desta vez.
Assim espero, e olhou para o homem. Procurou em seu sistema a identidade.
Vocês precisam melhorar meu scanner facial. É a segunda vez que não funciona.
Faremos isso. Alguns de nós usamos embaraçadores de identificadores.
Assim como William.
Isto é confidencial.
Ele era do Governo. Tinha conhecimento de ordens de alta patente. Ou era da ONU?
Isto é confidencial.
Ao menos seu nome real.
Jonah. Quanto a mim, me chame de Diretor Três.
Certo, isto é o suficiente por enquanto. Para onde agora?

Fechou-se a porta do helicóptero e voou para longe. Unidade Dois R.A.F.A.E.L.A. sabia que sua nova aventura seria épica. Enquanto isso, os soldados, alguns deles, ficaram em solo, empunharam suas armas e seguiram para Harmônia. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário