Eternizados no imaginário popular desde as décadas de 30 & 40, os monstros clássicos da Universal se tornaram mais do que apenas ícones do cinema de terror - como também fontes sempre pertinentes de inspiração, novas versões, paródias, homenagens, e até influenciando outras mídias. Nomes como Frankenstein, Drácula, a Múmia (e claro, o Lobisomem) exploraram mais do que apenas a figura de seus monstros titulares, já que ao mesmo tempo, levantavam temas tão universais quanto os próprios. A luta entre o bem e o mal, o medo do desconhecido, e porque não, a própria busca pela identidade. Representações de um medo primitivo, um reflexo de época, e que do mesmo jeito que nós, sempre se atualiza com o passar dos anos. Porque todos temos medo do escuro. Todos temos medo daquilo que não conhecemos (algumas vezes), talvez de forma precipitada. Todos temos medo de sermos julgados. Todos temos medo de admitir que temos tentações. Todos temos medo de, talvez, se tornar o nosso próprio (e maior) monstro.
Lançado em 1941, O Lobisomem (no original, 'O Homem-Lobo') pode ser visto dentro desse seleto grupo como o responsável por explorar, em especial, esse último ponto. Após a morte de seu irmão, um homem que retorna à sua cidade natal, acaba sendo atacado por um lobo ao tentar salvar uma moça. Após a mordida, ele descobre que passará a se transformar em uma criatura monstruosa, enquanto deseja mais do que tudo se curar de algo que ele não pode controlar. Mas, ironicamente, o quanto disso é realmente reflexo da besta no homem, e não do próprio homem na besta?
Há mais de 80 anos, já estava sendo apresentado um longa muito interessado no fator psicológico, algo que (ainda mais hoje em dia) se tornaria um ponto narrativo rotineiro e pertinente de muitas produções recentes do gênero. Seu protagonista, Larry Talbot, já se mostra alguém atormentado muito antes do lado mais extremo disso entrar na equação. Ele está longe de ser um homem ruim, mas sem dúvida, é alguém impulsivo. Ao longo do filme original, Talbot parece governado por suas paixões, indo de seus sentimentos por Gwen, que está noiva, até seu desejo de entrar em ação ao primeiro sinal de problema - este, inclusive, que é a razão pela qual ele é mordido em primeiro lugar.
Ele também reage emocionalmente a muitas coisas (ele ficou longe de casa por quase dezoito anos), só voltando mesmo ao saber da morte de seu irmão mais velho, que acaba o fazendo se reconciliar com seu pai, um aristocrata que, naturalmente, não via seu filho mais novo assumindo seus negócios. E a coisa não muda muito de figura quando Larry entra em sua busca desesperada para se livrar de sua maldição, e não machucar ninguém no processo. Nesse ponto, talvez você poderia ir até além, podendo ainda taxa-lo de "ingênuo" - apesar que em uma situação como essa, certamente não haveria muito no que uma pessoa desesperada não acreditaria (ou tentaria) para se livrar de uma maldição. Agora troque essa palavra por algo como "medo", "angústia"...vício, e note como apenas tirar a palavra "maldição" ainda não deixa o sentido mais amigável. Apenas mais real.
O sucesso do filme naturalmente levou essa figura a ganhar novos desdobramentos (a clássica questão da lua cheia, por exemplo) não existia no longa original, e assim como outros de seus próprios compatriotas, dependendo da mídia específica, a figura de Talbot até se tornou de fato uma espécie de anti-herói - e seus tormentos, talvez agora poderiam ser vistos como uma motivação para algo maior, ainda que sua base tenha continuado a mesma. É pensando em tudo isso que, de fato, chegamos a esse ano com o lançamento de uma nova tentativa de reinventar o personagem, agora através da mãos da Blumhouse, em conjunto com o diretor Leigh Whannell, já familiarizado com tal proposta após modernizar com sucesso O Homem Invisível para a produtora em 2020.
Na trama, vemos a situação atual de Burke (Christopher Abbott) que ao viver tanto um esfriamento de seu relacionamento com sua esposa Charlotte (Julia Garner) quanto preocupação com a imagem que transmite para sua filha Ginger (Matilda Firth) decide retornar para sua casa de infância após a morte do pai para empacotar suas coisas e, de quebra, encarar seu passado com o que teve de lidar por lá 30 anos antes. Naturalmente, as coisas logo tomam outro rumo diante de uma ameaça que consegue ferir Burke, antes que ele passe a se abrigar com a família na casa - enquanto ele lentamente também se torna uma ameaça para eles mesmos.
Fiz questão de fazer uma introdução no mínimo expressiva para que vocês já possam notar desde já alguns pontos. Mesmo que com um nome diferente, fica bem visível como o personagem titular foi projetado para ser uma versão repaginada de Larry Talbot: um homem impulsivo, internamente angustiado, com uma questão familiar que ainda ficou com pontas soltas com sua figura paterna (que por mais que não possa ser ainda assim taxada de fato como antagônica, também teve uma influência negativa) e que retorna anos depois ao local que foi palco de tudo isso, apenas para que também seja onde começa outro capítulo com consequências ainda mais aterradoras. Os paralelos são bastante visíveis. E na verdade, bem longe de também serem a única coisa que é apresentada dessa maneira.
Ao reimaginar o Homem Invisível, Whannell foi perspicaz ao liga-lo a um tema pertinente como o conceito de gaslighting (uma forma de manipulação psicológica) na qual alguém tenta fazer com que outra pessoa duvide da própria sanidade, normalmente através de frases de efeito como a clássica "você me obrigou a fazer isso”, ou "se você me amasse, me deixaria fazer o que eu quero". Mais do que uma atualização, tais questões acabam se tornando até mesmo um complemento para pontos que já eram o foco do original de 1933, como até onde podem ir os limites éticos e morais da ciência, e até onde a busca por poder pode transformar alguém em um insano. Em O Lobisomem, todos também queremos ver o monstro, mas ao contrário do que alguns podem imaginar (que questões como isso "talvez não funcionem" com tal personagem) é algo na verdade tão enraizado no próprio, quanto isso falado, ou da forma que Frankenstein é sobre uma história sobre as consequências de brincar de Deus. 'The Wolfman' é sobre o medo não apenas daquilo que não conhecemos, mas daquilo que sabemos que já está dentro de nós, e que antecipa até o próprio monstro (e com ele), o medo disso ser imutável. Não que seja exclusivo, mas já é algo diferente do termo 'The Werewolf' (o conceito básico), abordado de inúmeras maneiras distintas, e não com um norte definitivo. Aqui pode entrar Lobisomem de Anjos da Noite, Lobisomem de Um Lobisomem Americano em Londres, Lobisomem da Marvel, e até mesmo Lobisomem da Turma da Mônica. É tipo dizer que fazer um filme de vampiro com o Drácula (e um filme DO Drácula), é a mesma coisa, e certamente não é. A versão de 2025 é sem dúvida mais consciente de tal conceito - mas ao mesmo tempo, apenas ter isso não é o suficiente para dizer que isso é, na prática, aplicado. Ou pelo menos, sem que isso pareça mais uma lição de casa.
Você deve estar se perguntando aonde eu quero chegar com isso, mas é simples. Você que assistiu O Homem Invisível, me diga: o filme é sobre o que? Sobre uma mulher lidando com um verdadeiro monstro invisível e paranóico? Sim, o filme é sobre isso. O filme é sobre a superação de um relacionamento abusivo, e como ele pode ser justamente 'invisível' e manipulador? Sim, o filme é sobre isso. O filme é sobre um trauma, que mesmo fugindo, ainda afeta a protagonista, perseguida por uma ameaça invisível, de certa forma uma metáfora do impacto psicológico e da dificuldade de se reconstruir após tantos abusos? De como a sociedade muitas vezes pode invalidar as experiências de uma vítima com base justamente no que não vê? Uma história sobre confrontar seus medos e recuperar de fato o controle sobre a própria vida? Sim, o filme é sobre tudo isso. Mas o mais importante: ele no fim do dia ainda é um filme que sabe que deve ser um filme de terror, em primeiro lugar, entrelaçando esses elementos como um complemento que fortalece o seu foco, ao invés de algo que ainda precisa disputar tempo de tela para ser lembrado. Esse é o grande calcanhar de Aquiles que O Lobisomem nunca consegue contornar totalmente.
O foco do filme é sobre uma família lidando com um monstro, até mesmo entre eles? É sobre o medo de se tornar um? É sobre talvez o medo ser mais sobre você já ter sido "doutrinado" (ligando com a prévia que temos da relação que Burke tinha com seu pai) para ser algo assim de forma inevitável? É sobre a transformação, aqui apresentada como uma espécie de infecção, que te transforma naquilo que você tanto temeu, ou que apenas abre a porta que você fechou sobre esse lado sombrio de você mesmo? Ou é sobre, apesar de tudo isso, sobre como um trauma ainda pode ter uma luz no fim do túnel? A verdade é que a resposta aqui nunca parece convencer que é totalmente nenhuma dessas coisas, mas sim meros lampejos. A consequência disso é um filme que parece mais preocupado em deixar o que (tenta) passar o mais claro possível, do que deixar o público por si só absorver o que não é de fato elaborado de forma mais natural ao longo do mesmo. Diálogos como “às vezes nos preocupamos tanto em não traumatizar nossos filhos que viramos aquilo que os traumatiza”, parecem servir mais para a memória do filme, do que para quem assiste.
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| O diretor Leigh Whannell |
Isso se conecta ao ponto que serve até de título para esse texto, um ponto de vista meu que não pude deixar de ter depois de conferir. Quem conhece o histórico de Leigh Whannell sabe que ele é de fato um bom diretor, não apenas com base em O Homem Invisível. Estamos falando do mesmo sujeito que, em conjunto com James Wan, ajudou a criar franquias conhecidas do gênero (Jogos Mortais e Sobrenatural), e também de forma solo, comandou o subestimado Upgrade. Um nome com moral dentro da própria Blumhouse, que até por isso, decide chamá-lo novamente quando consegue outro monstro Universal para trabalhar, almejando um novo sucesso crítico e de bilheteria com o mesmo formato. E é aí que eu me pergunto o quanto disso virou outra coisa no caminho - é bom lembrar, além de dirigir, o cineasta também assumiu os roteiros, da mesma forma que fez com seu filme de monstro anterior.
A impressão que me fica é que Whannell até tinha de fato uma visão válida para o personagem do Lobisomem, indo de acordo com toda a discussão que pode ser criada e recontada com base em seu material de origem, almejando abordar o trauma e significados em meio a isso. A idéia de conceber a casa como principal cenário, servindo tanto como um ponto seguro quanto uma prisão, brincando com a claustrofobia que vem com isso, com algo sempre parecendo a espreita do lado de fora, enquanto também temos a questão tanto dramática quanto de tensão com Burke aos poucos perdendo até mesmo a capacidade de entender sua esposa e filha (enquanto também, porque não, ainda poderia tentar compensar seus erros que pode ter repetido de seu pai independente do que aconteça com ele próprio, em pró de sua família) parece no papel algo que realmente poderia ser muitas coisas ao mesmo tempo. Agonizante, tenso, dramático, pessoal, triste. Talvez até mesmo, ainda com algo otimista ao fim do pesadelo, independente do que isso significasse para Burke, e sim para sua esposa e filha. Mas então, não sei. Talvez ao longo do tempo da produção, o diretor não tenha conseguido manter o ânimo que ele claramente tinha quando concebeu O Homem Invisível. Ou talvez esse esperado ânimo que todos esperavam dele (até mesmo do próprio estúdio, além de nós, meros mortais) para se trabalhar o Lobisomem, já não fosse tão alto assim. Mas é aquilo, ele já estava contratado, e pago para entregar o trabalho esperado, um "novo Homem Invisível", um novo bolo com os mesmos ingredientes. E o que era uma idéia, então se torna mais uma obrigação contratual - e acredite, não é tão difícil assim de perceber ao assistir algo, quando um diretor demonstra ter tido ânimo real para dirigir um projeto, ou não.
Não que o filme não tenha momentos que até são interessantes. A idéia de vermos um pouco da visão meio "perdida" de Burke (enquanto seus sentidos se aprimoram, ouvindo barulhos que parecem muito mais altos do que realmente são) explorando outro ponto que começa a aparecer como consequência da infecção, é uma boa idéia. O diretor sabe também abordar e dirigir isso ao se apoiar no horror corporal, o que se torna o foco do segundo ato. São momentos que te recordam do real potencial que está aqui, mesmo que logo eles tenham de abrir espaço também para outros onde a tensão acaba não conseguindo se sustentar muito por outros meios, ou que tentam aplicar significados para cenas com diálogos expositivos e óbvios, apenas para dizer que foram empregados. Você já tem uma idéia de como tudo vai andar (marido lentamente se transformando em um monstro e lutando para não ceder aos seus impulsos sombrios, mãe ausente se reconectando com a filha através de um evento traumático) e o filme não parece muito preocupado em tentar mostrar que ainda poderia ir além disso enquanto os finalmente não chegam, ou pelo menos de dar mais substância a isso - o resultado é que não há tanta expectativa gerada para tal, seja qual fosse o meio para isso ser obtido. Seja se fosse por meios tensos, dramáticos, ou simplesmente através da empatia que podia ter sido gerada pelos personagens - esses que também refletem o roteiro.
É válido destacar como Christopher Abbott está realmente bem aqui. O ator passa naturalmente a imagem de um homem desconfortável consigo mesmo, bem como um reflexo de alguém que lidou com uma educação rígida cedo, mesmo que outros aspectos ao seu redor não dependam apenas do que ele pode entregar. O filme não parece dar tempo suficiente para vermos de fato os dilemas da família, já que a impressão que fica é que mal somos apresentados a situação que já existe, e logo mais outro ponto já está sendo estabelecido em cima disso. Se Abbot ainda consegue entregar algo, a personagem de Garner não consegue dar espaço para que a atriz possa ir muito além do arquétipo definido a ela (além de haver de fato uma falta de química maior formada entre o casal), sendo que isso devia ser uma base essencial para o andamento das coisas. E por mais que possa ser vendido, o longa também não chega a aprofundar realmente como o pai de Burke poderia ter sido tão rígido ou até mesmo abusivo com o mesmo em sua infância além de uma mera cobrança para prestar atenção. Lembrem-se, o filme ainda quer vender isso como algo que reflete diretamente em seu protagonista, mas nesse sentido, tudo que temos é um momento ainda no início, quando ele grita uma (válido dizer, uma única vez) com a filha. Pegando apenas isso como base, o personagem está longe de realmente abusar da filha emocionalmente como ele mesmo teria sido, logo ele não está realmente sendo como seu pai, e fazendo assim com que este suposto ciclo vicioso já tenha sido quebrado. Falta desse tipo de desenvolvimento básico à parte, ainda é sobre como temos temor de nos tornarmos nossos próprios monstros, entendido? Afinal o roteiro talvez ache que o seu cérebro é subdesenvolvido demais para compreender alegorias, que não sejam literalmente os personagens abrindo a boca.
E claro, independente das definições, também ainda estamos falando de um filme de lobisomem. Tensão ou sustos podem ser importantes, mas uma amostra mais nítida dos riscos também ajuda a dar peso a esses sentimentos - e claro que eu estou me referindo as mortes. Esse que é inclusive um dos pesares do remake de 2010 (até então ausente de citações aqui), já que por mais entretiveis que possam ser, elas beiram ao excesso, parecendo mais um filme de ação do que um filme de terror propriamente dito.
Como aqui o elenco principal consiste principalmente de 3 pessoas (uma delas sendo a que se transforma e as outras 2 sendo personagens que sabemos que não podem morrer por simples banalidade), o filme não tem muito aonde recorrer para exaltar o perigo presente ali quando não há na prática ninguém que seja pelo menos descartável para matar em tela. Algo que poderia ter ajudado nisso talvez fosse o acréscimo de outro personagem (outro familiar, um conhecido da família), ou mesmo uma situação onde outros aparecessem diante da casa, como um caçador. Basicamente o que temos é um personagem que é pego tão rapidamente, que ele apenas se torna uma morte que você não vai dar realmente muita bola. Em todos os sentidos mencionados aqui, O Homem Invisível tem uma execução e equilíbrio de temas mais nítida, cenas mais impactantes, sustos melhores...em resumo, simplesmente um filme mais inteligente no que se propõe a ser. E antes que eu me esqueça, quanto ao visual do bicho....eu até entendo qual era a idéia (o personagem aos poucos se tornando cada vez mais animalesco) inclusive o filme de 2010 já demonstra como aquilo soa doloroso acontecendo rapidamente, imagine então de forma mais lenta e contínua, é algo que entraria totalmente de acordo com o ambiente que o filme propõe. Mas então você olha pra o que aparentemente deveria ser o resultado final disso, e fica com a impressão que a transformação parou no meio. Acho que você entendeu o que eu quis dizer, né?
No fim das contas, O Lobisomem de Leigh Whannell ainda é sobre o mesmo propondo, mais uma vez, revisitar um clássico do terror - mesmo que desta vez, claramente sem o mesmo vigor criativo. Ao contrário do que foi feito em O Homem Invisível, onde o terror psicológico e as questões sociais eram entrelaçados de maneira natural, aqui temos um filme que parece mais intimidado por sua própria fórmula, e não sendo capaz de equilibrar seus elementos dramáticos com o horror de forma eficaz.
Embora Whannell tenha uma visão clara de como transformar o personagem do Lobisomem em uma metáfora para questões como o medo interno e a luta contra os próprios impulsos (elementos que resgatam as próprias raízes do monstro) a execução simplesmente fica aquém. A tensão prometida por uma transformação gradual e angustiante não é totalmente alcançada, e ao invés de um estudo de personagem, o filme acaba soando mais como uma obrigação contratual de recontar um mito, mas sem aquilo que poderia torná-lo realmente impactante e expressivo para a própria história de sua figura monstruosa.
Na verdade, talvez o maior erro desse filme (e que gera diretamente outros aqui mencionados, enquanto também afeta até os seus bons elementos) seja simplesmente a sua falta de ambição. O filme nunca parece almejar ir além de sua premissa e intenções básicas, como se o próprio Whannell estivesse preso a uma fórmula que ele mesmo concebeu. Esta que, aqui, acaba realmente soando mais como uma obrigação de entregar um produto, uma convenção a ser seguida, do que algo também alimentado por paixão e visão criativa. Bom, só espero que em seu próximo trabalho, ele já não tenha de lidar com algo do tipo novamente tão cedo.
Então é isso gente, espero que tenham gostado. Te vejo no próximo post. Falooow! Isso ainda vai soar natural
Por: Riptor









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