Sempre tive interesse por ficções especulativas. Fahrenheit 451, As Crônicas
Marcianas, A Noite dos Mortos-Vivos, A Guerra dos Mundos, 1984, entre outros.
Algo nelas é mais do que um retrato da sociedade em sua atualidade, mas como a
ficção torna-se parte dessa realidade e nos diz algo é o que me atrai de
verdade.
Sendo assim, estava tentando a conhecer O Conto da Aia desde o ano passado. A maior parte das pessoas conhece a história pela série de TV que está atualmente na terceira temporada (e que eu nunca assisti). Mas quanto livro, funciona? É isso que vamos descobrir na primeira crítica literária do blog Família Marvel.
Sendo assim, estava tentando a conhecer O Conto da Aia desde o ano passado. A maior parte das pessoas conhece a história pela série de TV que está atualmente na terceira temporada (e que eu nunca assisti). Mas quanto livro, funciona? É isso que vamos descobrir na primeira crítica literária do blog Família Marvel.
🧕 EDIÇÃO FÍSICA
O Conto da Aia foi escrito por Margareth Atwood e publicado em 1985. A edição
lida foi publicada no Brasil pela editora Rocco em 2017, tem 368 páginas, capa cartonada,
assim como sua contracapa e ambas acompanham primeira e segunda orelhas. Foi
produzida com páginas amarelas lisas pólen soft.
Não contém erros ortográficos (apenas um erro de digitação na página 160, 2º parágrafo, onde é trocado o nome Janine por Janice) e foi muito bem traduzida por Ana Deiró.
🧕 CRÍTICA
Á sinopse: Os EUA se tornaram um regime totalitário teocrático onde não há mais direitos fundamentais, mulheres não têm mais liberdades e servem apenas para funções específicas como educar outras mulheres, servirem de esposas e procriar. Nesta distopia acompanhamos a vida de uma Aia reprodutora, seu dia a dia e seus pensamentos sobre um mundo que não mais existe.
Se toda distopia tem foco no ser humano, O Conto da Aia vai um pouco mais além ao misturar mulheres e teocracia como um só produto a ser criticado mais do que outros temas aqui pincelados. As mulheres têm seu próprio ecossistema dividido em Esposas, Marthas, Econoesposas, Salvadoras, Tias e Aias. A cada uma é designada uma função específica a ser desempenhada pelo resto da vida.
A Aia protagonista também faz a função de Narrador-Personagem. Essa narração em primeira pessoa dá um tom lúgubre que casa muito bem ao tom triste da história. Um regime totalitário é virtualmente impossível de escapar, ainda mais quando há tão pouco de si mesma por que tentar. E dentro desse sistema, há outras coisas das quais Margareth Atwood mostra, como execuções públicas, a perda do nome das mulheres, o extremismo religioso que visa não apenas controlar a todas, mas também destituir de qualquer direito que não seja dado a partir de um homem ou mulheres “superiores”. Essa falta de individualidade das mulheres e suas respectivas castas transmite a sensação que a história da protagonista poderia ser vivida por qualquer uma. Um tanto quanto desapegado com a intenção de transformá-la num objeto especial, mas coerente com a ideia de que (também nós, leitores) somos parte de como se enxerga uma mulher nesta sociedade.
As roupas das Aias também dizem muito sobre seu papel. Toucas brancas
significando pureza de pensamento, túnicas vermelhas que podem ser
interpretadas como alegria na servidão, mas há uma conotação de vergonha
também. Nas Esposas predomina o azul, a cor do afeto, fidelidade, mas também é
uma cor fria que pode significar afastamento e/ou o ato de se reservar.
Os conceitos que apresentei até agora, por si só são polêmicos, mas como a própria autora já disse em algumas oportunidades, a proposta era mostrar coisas que já aconteceram antes. Nada do que ela fez foi inventado e está firmemente calcado no Naturalismo* (Ver Glossário Informal ao fim da crítica).
Mas se há algo exposto do início até o final da obra é a exacerbação do Cristianismo, sua autoridade e extrapolação dos limites, por mais que seja plenamente possível traçar paralelos também com o Islamismo. O conceito de mistificação da submissão feminina para o homem ter seu papel na sociedade é aberto à ambas interpretações religiosas, por mais que uma esteja mais perto da realidade de uma do que da outra.
Os conceitos que apresentei até agora, por si só são polêmicos, mas como a própria autora já disse em algumas oportunidades, a proposta era mostrar coisas que já aconteceram antes. Nada do que ela fez foi inventado e está firmemente calcado no Naturalismo* (Ver Glossário Informal ao fim da crítica).
Mas se há algo exposto do início até o final da obra é a exacerbação do Cristianismo, sua autoridade e extrapolação dos limites, por mais que seja plenamente possível traçar paralelos também com o Islamismo. O conceito de mistificação da submissão feminina para o homem ter seu papel na sociedade é aberto à ambas interpretações religiosas, por mais que uma esteja mais perto da realidade de uma do que da outra.
Há além disso, no livro, em determinado momento, suas impressões sobre sexo. A
Aia tem a função de reproduzir com os maridos das Esposas, mas os filhos
saudáveis que poderão nascer não serão dela e sim do casal previamente aprovado
pelo Regime. As relações consentidas são feitas num ritual chamado de Cerimônia.
Aia e Marido fazem um sexo mecânico, sem amor, sem tesão, onde a Esposa
participa segurando as mãos da Aia, dedos entrelaçados e fingindo o mesmo
prazer frio que os envolvidos têm. É também uma exacerbação da simbologia masculina
e sua tara por duas mulheres na cama. Não é erótico para o leitor, apesar da
Aia usar termos mais pejorativos durante o ato. Mas denota a intenção
necessária do ato com o casal que precisa de filhos e a Aia precisando
engravidar para não ser punida.
A falta de informação também é bem fundamentada aqui. A extinção de
meios de comunicação tornou tudo um telefone sem fio precário. Não há como
saber em quem confiar, nem se a prova de confiança é válida. Não saber o que
acontece no mundo lá fora já é opressor, ainda mais quando o destino da própria
vida e a de quem você ama já é um mistério. E por isso, o livro se vale
pesadamente de inferências*, o que
prova nas inserções da Aia que ela não está lá para explicar algo ao leitor
(nós, indiretamente, assim como todos os outros, não somos confiáveis), mas
apenas no papel de relatar o que viu e viveu.
É sabido que o gênero de Romances lida com esse excesso de problematização para
crescimento pessoal dos personagens envolvidos, mas nisso, Atwood subverte e
torna não apenas os Conflitos no
âmbito mais perto do moral como uma consequência da perda de liberdades femininas,
mas como torna as recompensas pequenas diante de uma bem-sucedida transgressão.
O que se oferece nisso é a reflexão do que uma vitória tão simples pode
significar num Estado de Exceção que mata por tão pouco em nome de Deus e da
Ordem.
A velocidade da narrativa é lenta e se arrasta nos pequenos mais cotidianos, o que aqui não é um defeito ao menos na maioria das vezes, ainda que eventualmente se alongue um pouco além do que poderia. Sobre as mensagens que a protagonista precisa dizer, ela diz. O que ela não quer expor, seja pela dor ou pelo simples fato de que há outras coisas mais urgentes, ela entrega à conta gotas ou não. Há um método declarado nisso que pode não agradar leitores ávidos por leituras mais frenéticas, o que está longe de ser o caso aqui. Pelo fato da história se passar num ambiente onde qualquer mulher pode ser subjugada por motivos realmente pequenos, a República de Gilead passa a sensação de ser um organismo morto (que ajuda a dar a sensação de dias longos e iguais durante a leitura) onde as pessoas são controladas não pela fé, mas pelo medo da quebra das regras. E é interessante pontuar, por amor ou pela dor, toda base de qualquer religião onde é centrada numa figura de autoridade, o maior receio é a perda do “galardão” através do pecado.
A velocidade da narrativa é lenta e se arrasta nos pequenos mais cotidianos, o que aqui não é um defeito ao menos na maioria das vezes, ainda que eventualmente se alongue um pouco além do que poderia. Sobre as mensagens que a protagonista precisa dizer, ela diz. O que ela não quer expor, seja pela dor ou pelo simples fato de que há outras coisas mais urgentes, ela entrega à conta gotas ou não. Há um método declarado nisso que pode não agradar leitores ávidos por leituras mais frenéticas, o que está longe de ser o caso aqui. Pelo fato da história se passar num ambiente onde qualquer mulher pode ser subjugada por motivos realmente pequenos, a República de Gilead passa a sensação de ser um organismo morto (que ajuda a dar a sensação de dias longos e iguais durante a leitura) onde as pessoas são controladas não pela fé, mas pelo medo da quebra das regras. E é interessante pontuar, por amor ou pela dor, toda base de qualquer religião onde é centrada numa figura de autoridade, o maior receio é a perda do “galardão” através do pecado.
Instiga também a falta de sororidade entre as mulheres que por mais que sejam
dividias em subclasses sociais, conseguem se dividir ainda mais entre si. Não
há empatia, mesmo entre amigas de outrora. Umas deixam as outras sozinhas para
fugir do regime, denotando egoísmo e o desejo da individualidade e salvação
própria, e após, a hipocrisia de quem se preocupa. Mais uma metáfora da
falsidade religiosa.
Em outro extremo, as que são submetidas ao regime perdem a apatia umas pelas outras aos poucos, ainda que se vejam “duplicadas” ao lado de quem se vista como elas em suas classes. Tampouco há o desejo da libertação moral apregoada pelo feminismo. Como contexto a isso, cito um pouco da vida predecessora da Aia que protagoniza a história. Ela já era submissa ao marido antes de ser colocada para procriar, mas ao menos era livre, subentendendo uma independência que refletia o período que a autora escreveu o livro, os anos 80. O que as mulheres buscam na história é longe do feminismo que se prega como praxe na atualidade, mas sim os direitos de outrora, que visava ter mais possibilidades e não apenas o que o opressor invisível demandava. Ou no caso de Aia, parafraseando Jessie de Jogo Perigoso (de Stephen King), ser mais do que “um sistema vivo para o apoio de uma boceta”.
Talvez o único defeito mais gritante que haja na história seja uma pequena Digressão* que serve como elo costurado entre alguns fatos com a única e exclusiva função de dar para o leitor informações sobre personagens do passado da protagonista. Para ela, nenhuma diferença faz, já que o assunto morre depois, pois naquele momento, a linha narrativa já estava em outro caminho. Este fato mantém pouca uniformidade e não faz tanto sentido na trama, podendo até ser retirado que não faria falta.
Em outro extremo, as que são submetidas ao regime perdem a apatia umas pelas outras aos poucos, ainda que se vejam “duplicadas” ao lado de quem se vista como elas em suas classes. Tampouco há o desejo da libertação moral apregoada pelo feminismo. Como contexto a isso, cito um pouco da vida predecessora da Aia que protagoniza a história. Ela já era submissa ao marido antes de ser colocada para procriar, mas ao menos era livre, subentendendo uma independência que refletia o período que a autora escreveu o livro, os anos 80. O que as mulheres buscam na história é longe do feminismo que se prega como praxe na atualidade, mas sim os direitos de outrora, que visava ter mais possibilidades e não apenas o que o opressor invisível demandava. Ou no caso de Aia, parafraseando Jessie de Jogo Perigoso (de Stephen King), ser mais do que “um sistema vivo para o apoio de uma boceta”.
Talvez o único defeito mais gritante que haja na história seja uma pequena Digressão* que serve como elo costurado entre alguns fatos com a única e exclusiva função de dar para o leitor informações sobre personagens do passado da protagonista. Para ela, nenhuma diferença faz, já que o assunto morre depois, pois naquele momento, a linha narrativa já estava em outro caminho. Este fato mantém pouca uniformidade e não faz tanto sentido na trama, podendo até ser retirado que não faria falta.
A autora Margareth Atwood |
Num desfecho aberto e cinza propositalmente sujeito à interpretações inclusive
com seu “estudo” no prólogo Notas
Históricas Sobre O Conto da Aia. Afinal, o homem está acima da mulher até
quando e às custas de quantos erros históricos? À mulher caberá o papel de
validar o homem através das migalhas dadas sem se dar conta que desta forma
poderiam estar a um passo de repetir as velhas omissões? Aqui é entrelinha
pura, pouca necessidade de didatismo e uma genialidade incrível para se passar a
mensagem.
Também não vi a obra como reflexo da “Direita Extremista”, como algumas pessoas citam. Vi sim o conceito de regime totalitário em si, algo que
já aconteceu em ambos os lados. Obviamente, extrapola-se a função conservadora
das figuras de linguagem, mas vejo essa politização muito mais como parte do
nosso período atual de exageros filosóficos sobre certo x errado. Continua, ao
menos para mim, uma ótima ficção especulativa sobre males de quaisquer
vertentes ideológicas, já que repressão de sexualidade no Totalitarismo não é
exclusividade de A ou B.
O Conto da Aia é chocante, mesmo sendo pontual na violência e focando no dia a
dia de uma personagem e as consequências de seu fracasso. Buscando muito mais
dialogar com o leitor do que impor alguma coisa, tem uma velocidade quase
sempre certeira e marca pela mostra que o extremismo causa males mesmo nos dias
de hoje, de forma velada. Tema este que nunca foi tão atual já que é dos homens
o papel de andar em pé de igualdade com quem teve esse “pequeno capricho”
negado tantas vezes na história da humanidade. Uma ótima obra de Margareth Atwood
que merece ser contemplada.
🧕 Nota: 9,0
OBS: A crítica da continuação deste livro, Os Testamentos, está AQUI
🧕 Nota: 9,0
OBS: A crítica da continuação deste livro, Os Testamentos, está AQUI
Espero que tenham gostado.
Até a semana que vem e boas leituras,
Saitama de R'lyeh
🔴 Glossário Informal
🔴 Glossário Informal
*Naturalismo - Movimento literário surgido no século XIX que buscava
responder o Realismo com subversão de conceitos e exacerbação de seus piores
aspectos. É intimamente ligada à construções de distopia.
*Inferências - Informações apenas contextualizadas a partir de
pressupostos, sem conhecimento prévio do leitor e apenas do(s) personagem(ns).
*Digressão - Mudança de foco da
estrutura principal da narrativa com situações diferentes e menos construídas
ao redor da trama.
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