segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Saitama Critica #5: Hellraiser - renascido do inferno - Livro


Vocês toparam a ideia, então beleza. É hora de abraçar um Cenobita pela segunda vez, mas agora, em formato de crítica.



Bora logo para o assunto tem muita coisa a ser dita hoje.

🔞 EDIÇÃO FÍSICA

Publicado em 1986 por Clive Barker, Hellraiser: renascido do inferno, a edição brasileira lida é de 2015, produzida pela Darkside Books. Vem em capa dura emulando couro (conhecido como book frame), com desenhos e letras na cor amarelo-ouro. Tem 160 páginas em pólen soft e acompanha fita embutida de cetim preta, além de esboços originais do personagem para o filme e sua versão cinematográfica icônica.

Seguem imagens abaixo:



De erros ortográficos apenas um foi encontrado na pág. 110, onde faltou a digitação "de tempo":

"Levou um pouco [de tempo] para que ela reconhecesse (...)"


🔞 CRÍTICA

Sinopse: Frank Cotton é um homem que não sente mais prazer pleno nas coisas. Experimentou de tudo, fez de tudo e vive num estado de desilusão com a vida, até o dia que ele consegue a Caixa de LeMarchand, um quebra-cabeças que, se resolvido, dará prazeres inimagináveis ao seu proprietário. Frank consegue decifrar o enigma, mas há algo errado. Cenobistas, seres com corpos cortados, anelados e machucados, surgem para ele dispostos dar a ele muito mais do que imaginou.
Alguns meses depois Rory, juntamente com a esposa Julia, se muda para a casa de sua falecida avó. Já Kirsty, a fiel amiga de Rory, sempre presente e constantemente evitada por Julia, tenta a todo custo se manter perto, mas mal sabe ela que o horror está ainda mais.
Vou ter que fazer uma crítica que mescla os modelos da Crítica Intrínseca com a Extrínseca aqui hoje, porque a obra se confunde com a vida de seu idealizador e é difícil não citar uma sem cair na outra. Falar de Hellraiser é dicotômico. Ao mesmo tempo em que você fala de prazer, há de se tocar na metáfora da culpa do prazer sexual. No caso de Barker isso é mais evidenciado porque Clive Barker se reconhecia como homossexual desde seus 18 ou 19 anos. O que faz bem a ponte entre desejo da carne e punição por um “desejo proibido”. E isso é externalizado da forma mais expansiva possível aqui, ou seja, com o horror.

Clive Barker

Clive Barker só assumiu publicamente a sua homossexualidade a partir dos anos 90, o que demonstra todo o fardo que ele precisou carregar durante seus anos anteriores. Suas obras são um reflexo das suas internalizações, já que desde pequeno ele teve contato com a morte, quando criou um interesse pelo mórbido ao testemunhar um homem saltando do avião em que estava com asas artificiais. A asa se quebrou e, apesar de Clive ter sido virado para que não visse a morte do homem, criou, a partir dali, um interesse pelos temas sombrios da vida. Assim ele se iniciou, na juventude, em seu fascínio pelo gore e suas manifestações dualitárias na arte.

Em tempo, algo importante precisa ser dito: Hellraiser só foi escrito em formato de romance porque seu autor queria mostrar o potencial da história em vendas para que depois fosse adaptada para o cinema. Algo que conseguiu rapidamente, pois pouco mais de um ano depois de seu lançamento, Hellraiser: Renascido do Inferno ganhava o primeiro longa-metragem.


Por isso, quase todos os elementos de filmes slashers* (ver em Glossário Informal ao fim da crítica) que foram popularizados naquele período estão todos lá: cômodos abandonados, corridas desesperadas na fuga pela vida, promiscuidade, sexo e protagonistas problemáticos.




Com uma história de pouco menos de 150 páginas e divididos em dez capítulos, Barker transita bem entre cenas. Há um certo tom poético focado no lirismo nos primeiros sete capítulos. A maneira agridoce com que ele consegue falar da passagem do tempo é um bom exemplo disso: "Até o inverno – a estação mais dura e implacável – com a aproximação de fevereiro, sonha com a chama que o derreterá. Tudo fadiga com o tempo e começa a buscar alguma oposição para salvar-se de si próprio. As estações ansiavam umas pelas outras, como homens e mulheres, para que elas pudessem ser curadas dos seus excessos. Se a primavera se estender mais de uma semana além do período, começa a ansiar que o verão acabe com os dias de promessa perpétua. O verão, por sua vez, logo começa a suar por algo que aplaque seu calor e o mais sazonal dos outonos se cansará do requinte e suplicará por um fio rápido e congelante que mate sua fecundidade. Então, agosto cedeu lugar a setembro e houve poucas queixas e reclamações.” Ainda que ele tenha esses eufemismos narrativos e que eles alternem entre um certo romantismo e o gore, a poética é mostrada claramente num formato decrescente, a ponto de que, quanto mais perto do Clímax, mais crua a forma da escrita.

Por se tratar de uma história curta, os personagens são, no máximo, bidimensionais. Frank é o desamparado pela dor além do extremo, mas aflige dor e manipulação. Julia é uma mulher frustrada pelo seu casamento fracassado e só precisa ouvir um certo nome para se lembrar de um prazeroso erro do passado e se entregar assustadoramente à morte. Rory é o mais unidimensional, sendo o marido bondoso e é só. Kirsty é a protagonista problemática, nitidamente desligada, apática e que, apesar de apenas uma camada realmente exposta, consegue um desenvolvimento mais profundo em outros segmentos a partir da metade da história. Mesmo que seja sutil na expositividade, é algo bem reforçado nas sequências de estresse e ação que acontecem, ficando a cargo do leitor em decifrar as pequenas inferências dadas pelo autor.
Mas isso não quer dizer que esse foco em apenas um ou dois aspectos da personalidade dos personagens funcione sempre. Alguns deles sofrem com o pouco espaço que seria natural para medo e dúvidas. Rory é tão unidimensional que incomoda. É pouco provável que o leitor até consiga sentir pena dele em seu desespero para salvar o casamento. Há uma comicidade involuntária aqui. O drama com ele é existente, mas raso. Quanto mais se lê sobre ele, mas dá vontade de rir pela sua ridicularidade.

Caixa de LeMarchand
No caso de Julia, ela é a que mais sofre disso ao ser amputada moralmente ao descobrir sobre o destino de Frank e o que precisa ser feito para que as coisas voltem a ser como antes. Não há a transição palpável. Apenas a ordem: apatia > curiosidade > atitudes extremas. Essa falta de variável mais orgânica é a que mais incomoda. Frank, por ser o falso-protagonista da história, acaba sendo justificado que pare na primeira camada. Ele precisa ter poucos tons para que funcione como contraponto moral e assassínio com manipulações execráveis. Sobre a narrativa, ela varia de velocidade depois de um tempo. Começa vagarosa, ensaiando algumas boas descrições de ambientes, sentimentos e as máscaras que cada personagem usa para se defender do outro. Mas depois de um tempo, ela apressa e não orna como antes

E esse problema fica claro na transição do fim do Conflito até depois do início do Clímax. Elementos de cena aparecem do nada em um roteirismo claro, sem motivação alguma ou explicação plausível. Em um pedaço de grande tensão uma personagem é nitidamente retirada sem deixar rastros porque seria humanamente impossível que a outra personagem sobrevivesse se ela estivesse ali e reaparece milagrosamente depois de um tempo como se nada tivesse acontecido. Todos os personagens envolvidos têm intenções escondidas e se enganam mutualmente. Todos são ligados ao amor. Numa escala mais pecaminosa ou mais pura, é isso que acontece. Por isso Hellraiser precisa contraditar-se, afinal, ele satiriza as intenções do ser mau na esperança de receber a bondade em troca. E se há bondade, ela necessariamente não significa ser recompensada na mesma medida. E por tratar desses temas tão complexos em sua base, eventualmente alguns problemas aparecem em decorrência desse inchaço. No início do Clímax, numa cena de hospital-casa, há problemas de tempo-físico confusos, onde o Narrador-Observador passa uma sensação para depois, mais a frente, passar outra de forma mais clara. Precisei voltar duas vezes para ver se eu não tinha lido errado, procurar, ver certinho e depois perceber que foi apenas confusão do autor. Apesar desses defeitos, há outros elementos que agradam. Barker trabalha a tensão muito bem e recompensa a espera do leitor com uma violência realmente gráfica em diversos momentos. Como já escrevi na resenha do livro uma vez, o gore aqui é quase um prazer necessário, pois é pelos olhos de um personagem que ele se torna pleno e urgente. É detalhado, por vezes acertadamente catártico, mas sempre realista. E tudo bem ser dessa forma, pois é a proposta: o prazer na dor, o tesão no horror. Qualquer pouca consciência que se crie do quão errado isso é, se perde na esperança do amor. Contraditório? Com certeza ele é. Mas (funciona sendo) propositalmente contraditório, porque o livro precisa ser tratar o assunto. O Engenheiro, visivelmente o mais poderoso deles e mais importante, aparece apenas uma vez e citado outras três anteriores. Ele nunca é explicado, assim como os outros seres. A única vez que o vemos em ação é assustador e doentio, mas dada às circunstâncias da situação, sentimos uma certa satisfação. E o fato de Pinhead (nome introduzido apenas no filme, mas me aproprio dele aqui) ser mulher no livro também é interessante por questão ilustrativa, mas para a trama não faz a menor diferença.



Para terminar, vamos falar dos Cenobitas. Eles são nojentos, assustadores, com um ar socrático incrível e credito isso à origem inglesa de Clive Barker. De longe, os personagens que mais têm a dizer mesmo aparecendo pouco, porque os humanos estão tão presos às próprias necessidades que os seguidores da Ordem de Gash acabam soando elevados diante de tanto egoísmo e de fato o são, pois eles trabalham por um bem comum e na luta de cumprirem a promessa de dar prazer, mas... o que é prazer para eles? A resposta a quem conhece a franquia de cinema é bem conhecida, mas sempre traz uma metáfora poderosa. A unidade dos quatro também é bem didática e explicativa. A história é focada em quatro humanos, cada um por si, querendo amor, mas falhando miseravelmente nisso, enquanto os Cenobitas, também quatro, fazem de seu trabalho uma oportunidade coletiva de tesão e experimentos. Ao final de Hellraiser: renascido do inferno, fica aquela sensação de história que peca nos detalhes e se apressa quando não precisa, mas que se permite ser mais do que isso. Ela consegue envolver, assustar, te fazer tomar lados, condenar e querer ver até onde todos os personagens chegarão. Além de perceber que querer gozar gostoso pode ser um baita problema. O hedonismo nunca foi tão multifacetado e tão narcisista quanto por Clive Barker, mesmo que a sexualidade esteja em jogo aqui.

🔞 NOTA: 8,0


Espero que tenha gostado. Deixe seu comentário abaixo.

Abraços, Saitama de R'lyeh
🔴 Glossário Informal
Filmes Slashers - Criado nos anos 70, mas popularizados nos anos 80, era um subgênero do terror/horror, onde um assassino (ou vários) perseguia um pequeno grupo de pessoas em ambientes diversificados. Como exemplos: A Hora do Pesadelo, Sexta-Feira 13, Halloween e O Massacre da Serra Elétrica.
Gore - Elemento utilizado no horror, mas opcional no terror. Evoca cenas grotescas e nojentas, com sanguinolência visceral, explícita com o intuito de causar repulsa.

📜 Quantidade de Post its usados para esta crítica: 21



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