sexta-feira, 15 de maio de 2020

Saitama Critica #14: Os Testamentos



Continuação direta de O Conto Da Aia, livro não poupa o leitor.

É estranho ler uma continuação depois de 35 anos do primeiro volume e duas ou três temporadas de um seriado de sucesso em The Handmaid’s Tales. Parece, à primeira vista, algo calculado para mirar nos espectadores da série, fazer alguns links e quem sabe, angariar mais alguns anos de televisão.

Parece.

EDIÇÃO FÍSICA

Escrito mais uma vez por Margaret Atwood, Os Testamentos foi lançado pela Editora Rocco em 2019 e tem 448 em pólen soft com capa cartonada. Curiosamente, a capa se confunde com contracapa, inclusive se utilizando de desenhos com mensagens subliminares.

Não foram encontrados erros de ortografia e digitação. Apenas um parágrafo sem espaçamento adequado e só. Nada que interfira na leitura.

CRÍTICA

Protocolarmente, à sinopse: 15 anos depois dos acontecimentos de O Conto da Aia, a República de Gilead, antigamente conhecida por Estados Unidos da América, continua funcionando, mas já demonstra sinal de desgaste. A história acompanha Tia Lydia, uma das fundadoras do estado totalitário que está cansada e com idade avançada. Agnes Jemima, uma adolescente de Gilead que está aprendendo de maneira tortuosa que não é dona de seu próprio destino e uma garota canadense chamada Dayse que precisa sair do conforto de seu país para encarar uma difícil missão em um lugar extremamente hostil.
  
O Conto da Aia foi publicado em 1985 e é considerado uma das distopias mais relevantes da história da literatura. Tem crítica deste livro aqui no blog e aconselho que (re)leia antes de continuar lendo este texto sobre Os Testamentos. A quem interessar, o link está AQUI.

Continuações tardias são sempre recebidas com desconfiança. Alguns fãs mais puristas, muitas vezes acertadamente, rechaçam as obras posteriores de um universo específico por sentirem o cheiro de cifrão desavergonhado que um autor usa para justificar seu retorno (e as continuações de Clube da Luta são um bom exemplo para tal). Os Testamentos, olhando de primeira, caem exatamente nesta premissa. Por que um livro só agora, quase 40 anos depois? Seria coincidência que o seriado do Hulu tivesse algum tipo de influência sobre Margaret Atwood?


Respostas assim não tem uma definição específica, porém, é possível ser categórico em dizer que esta continuação em pouco, ou nada, deve ao seu primeiro volume. Os Testamentos consegue ser minimalista ao tirar o protagonismo das Aias e suas vidas sofridas, porém massacrante ao focar o macro.

Antes de prosseguir, vamos relembrar mais uma vez a hierarquia de Gilead para que tenhamos uma noção de quem é quem aqui:
Tias: São as mulheres que educam todas as demais castas, com exceção das Econoesposas. São elas que criam as regras que outras mulheres seguirão, assim como punições e torturas. São vistas como virtuosas e poderosas.

Esposas: Ensinadas desde o berço para casarem com maridos arranjados pela família. São o grupo de maior risco de vida, já que em Gilead homens são privilegiados com discrição, regalias e com o fato que neste lugar divórcios são proibidos e mulheres devem ser submissas ou poderão ser apedrejadas.

Marthas: São mulheres que aprendem a servir Esposas e Maridos durante sua vida. São as responsáveis por serviços domésticos e são proibidas de se casarem.

Econoesposas: São liberadas para serem esposas, domésticas e reprodutoras, porém, pobres. Não recebem educação diretamente das Tias, apesar de reverberarem suas ideologias.

Aias: Classe mais baixa na hierarquia. Existem apenas para fins reprodutivos e passam de lar em lar para dar aos homens ricos, filhos para suas Esposas. Uma Aia que não consiga engravidar, pode ser executada com o tempo.

Se você já leu O Conto da Aia, sabe que Tia Lydia tinha um papel extremamente secundário na obra. Ainda assim, ela detinha uma importância extremamente inferencial com o livro mostrando seus ensinamentos para Offred, a Aia-protagonista. Aqui, o protagonismo de Lydia é escancarado. Atwood acerta ao mostrar a Tia com ares vilanescos, porém, que flertam com um desejo de vingança contra as pessoas certas. Humanizá-la, mesmo com a desumanização das Tias, ajuda num ponto que vou citar mais à frente.


Lydia é o condutor do livro. Sagaz, idosa, estrategista e política. O seu ser-mulher, apesar da submissão ao Estado, consegue tratar com igualdade com um dos antagonistas da obra, o Comandante Judd. Existe aqui uma falsa dicotomia que Margaret Atwood usa para trazer o leitor para o lado da Tia: Ambos são exatamente iguais: Sem sororidade, sem empatia, sem pena. Há apenas um grande e singular sentimento de controle e autopreservação que os une quanto personagens, mas os separa quanto intenções.

É realmente fascinante como Atwood se utiliza da manipulação narrativa para falar de feminismo, igualdade, equidade sem sequer tocar nestas palavras uma única vez no livro todo. Ao colocar uma vilã no controle do protagonismo, não apenas adiciona cores ao preto e branco raquítico que a literatura, muitas vezes, insiste em nos enfiar goela abaixo com os temas já citados, e afundando em sentimentalismo quem não mereceria recebe-lo do leitor. Este investimento emocional começa vagaroso, porém, se fixa ao apresentar as outras duas protagonistas, Agnes e Dayse.


Lydia tem sua carga emocional e desenvolvimentista pronta, porém Agnes e Dayse estão em formação. Ambas as adolescentes, estas sim, conseguem trazer uma moralidade diferente justamente por não estarem prontas como Lydia. Se há heroínas nesta história (e eu me recuso a chamá-las assim), estas casam ao termo de maneira altamente involuntária. Atwood usa a distopia como pano de fundo para problemas atuais como: interferência familiar indevida, falta de oportunidade para uma mulher se exercer, preconceito sexual, abuso, estupro e a total inabilidade de se ser quem é. Então, a autora as interliga de maneira paulatina e genial.

Se no seu primeiro volume, ela colocava o cotidianismo como apresentação ao totalitarismo, aqui a autora consegue, desta vez, desenvolver melhor o início da queda de Gilead contrapondo as mesmas vicissitudes com acontecimentos maiores. É contraproducente, mas de uma maneira boa, muito boa. Não há aqui o menor medo de chocar o leitor, tampouco os próprios personagens. Um desses momentos é a reapresentação da Particicução, onde as Aias matam de maneira selvagem, com as próprias mãos, condenados por crimes graves. Apesar da rápida descrição, o peso da cena é enorme e o gore, apesar de rápido, é impactante, assim como no primeiro volume. Mas há no ar uma certa sensação diferenciada ao tom deste acontecimento trazer apegos emocionais e como eles são lidados em Gilead.

É importante frisar que Margaret Atwood fará 81 anos em 2020 (ano que esta crítica foi feita) e sua jovialidade ao tratar dos temas citados é simplesmente ímpar. A escrita dela, apesar de ter uma maturidade desde O Conto da Aia, em Os Testamentos, tem seu ápice justamente por dar a complexidade (e algumas respostas sobre o fim do regime) da política e do machismo em contextos lúdicos e simples.

Atwood nunca foi rebuscada. A escrita direta da autora nestes escritos só é interrompida ao intercalar capítulos. E isto liga ao ponto que deixei lá trás, neste texto: A capacidade da autora em transformar uma distopia apavorante como Gilead em um lar, por consequência, trazendo o leitor ao lado do regime autocrático. Chega a ser, por vezes, ofensivo ver como a representação do Canadá no livro se torna preconceituosa e por outras, há um questionamento real se a República realmente precisa cair. Isto que mais assusta: o dom narrativo em apresentar uma Tia como alguém que merece ser seguida como protagonista, enquanto duas jovens se embaralham na teia política daquele país.

Margaret Atwood

A grande questão é que Atwood provoca e surra a extrema-direita de maneira exemplar ao mostrar fanatismo religioso aliado à politica, negacionismo científico e climático. Um regime religioso onde o conservadorismo (e digo isso com minha parte conservadora em mãos) alcança patamares hiperbólicos é sempre digno de nota na literatura. E em Os Testamentos o tom sobe um pouco, ainda que de maneira discreta. Ao sermos apresentados aos seus meandros e mecanismos, a política se torna um aparato importante dentro das atitudes dos protagonistas e coadjuvantes. Quem não aprende a se portar de maneira comedida com estes elementos, está fora do contexto, portanto, sem delinear a máxima de que todos somos seres politizados, com lados. E mesmo que haja a disposição para mudar de ideologia, fica sempre aquela silenciosa lamentação. Politicamente não mudamos, primeiramente, por paixão, mas, sim, por decepção. Só depois o amor acontece, mas sempre lamentando o que se perde. Eis aqui a maior lição de Os Testamentos de Margaret Atwood: Tudo é mutável, tudo é controlável. Nem sempre por nós. A política e suas ideologias provém de algum tipo de manipulação. Para mais ou para menos, morremos por isso. Idiotas úteis é o que somos, ainda que para causas maiores.

O único “senão” do livro, mais uma vez, é parte de seu Clímax. Onde dentro das imprevisibilidades da obra, a escrita fica altamente previsível com problemas chavões e com alguns pequenos roteirismos e conveniências. Ao partir para um pouco mais de ação, Atwood se perde um pouco, mas encontra-se nas páginas finais ao mostrar, mais uma vez, que não importa quanto as coisas mudem, elas continuam extremamente iguais. Ao refletir isso mais uma vez, assim como faz ao final do primeiro volume, ela joga mais uma vez no rosto do seu leitor que tudo ainda está longe de mudar.

Isto posto, Os Testamentos é um livro altamente proficiente, com seu charme próprio, propositado a quebrar expectativas, emocionalmente afetado e dúbio. Margaret Atwood flutua sublime entre os tons de cinza da política e motivações, mostrando protagonistas igualmente divididas entre dever e ser. Erra muito pouco em sua reta final e mesmo sendo crasso, é menor se comparado a tudo que apresenta em suas centenas de páginas antecessoras. Ainda que não consiga ser tão surpreendente quanto O Conto da Aia, compensa na profundidade em que se trata e discerne a própria relevância da satisfação em sê-lo apenas uma ficção não tão longínqua de existir. É uma obra para se colocar na estante e pensar numa das suas frases, na página 445, no posfácio da autora: 
“Totalitarismos podem desmoronar de dentro para fora, à medida que deixam de cumprir as promessas que os levaram ao poder; ou podem ser atacados de fora para dentro; ou ambas as coisas. Não há fórmulas infalíveis, já que muito pouca coisa na história é inevitável”

NOTA: 9,0

Então é isso. 
Espero que tenham gostado. 
Abraços e boas leituras. 
Saitama de R'lyeh

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