sábado, 6 de junho de 2020

Saitama Critica #16: Evangelho de Sangue



Abrindo a Caixa de Lemarchand pela última vez.


Depois de uma leitura primorosa de Hellraiser – Renascido do Inferno (que você pode conferir a crítica AQUI), sem pensar duas vezes adquiri Evangelho de Sangue, a continuação que promete terminar a saga de Pinhead e dos Cenobitas.

E eis nos próximos parágrafos o que achei deste livro.

EDIÇÃO FÍSICA

Com 317 páginas, Evangelho de Sangue foi escrito por Clive Barker e lançado no Brasil pela Editora Darkside em 2016. Possui capa dura, páginas pólen soft bold e fitilho de cetim na cor carmesim.

Não foram encontrados erros de ortografia ou digitação.

CRÍTICA

À sinopse, como de praxe: Harry D’Amour é um detetive do sobrenatural que inicia um caso onde vai se encontrar com Pinhead em pessoa e descobre que o Cenobita tem planos que vão além de dar “prazer” para suas vítimas e que envolvem o investigador paranormal e pessoas do seu convívio mais do que ele gostaria.

Saindo do pressuposto de que você leu minhas críticas de O Sol da Meia-Noite (Clique AQUI) e Os Testamentos (Clique AQUI), deve estar familiarizado com a quantidade de vezes que citei sobre expectativas de continuações. São, por muitas vezes, irreais e injustas. Como Evangelho de Sangue também é considerada uma continuação, em teoria, é possível encaixar Evangelho... dentro deste nicho.

Quando digo “em teoria”, é pelo fato de que a obra é confusa neste sentido. Ela se propõe a ser um retcon - Obrigado Riptor - que, ao mesmo tempo, insere elementos dos filmes. No fundo é tudo isto junto e quando uma obra quer ser demais, normalmente o resultado é um só.

A Caixa de Lemarchand neste livro também traz seu nome cinematográfico: Configuração do Lamento

Evangelho de Sangue começa muito bem em seu prólogo. Dá um tom muito sinistro, macabro e pessimista. O gore é detalhado e a escrita de Clive Barker é extremamente visceral. O sentimento de repulsa é eficaz, assim como as nuances de mistério que do qual o livro insere. Com certos detalhes ocultados de forma organicamente, nem todas as respostas são dadas sobre alguns temas abordados no primeiro livro, como o fato do Pinhead ter se tornado homem (no primeiro volume era uma mulher) ou porque ele não precisa mais da Caixa de Lemarchand para transitar entre seu local de origem e a Terra, ainda que existam pequenas dicas. É instigante e promete entregar uma obra chocante ao mesmo tempo afetada pelo sexo e pela religião.

O grande problema de Evangelho de Sangue é que, além de sua indecisão sobre o que quer ser, as coisas boas que ele dá duram pouco tempo. O tom do prólogo termina rápido e o que se vê é um sucessivo jogo de tentativa e erro sem direito a ressarcimento. A sensação que fica é que a obra foi escrita por muitos Clive Barker’s diferentes, todos com muito a dizer, mas pouco espaço dentro de um livro de pouco mais de trezentas páginas. Ao sabor do autor, ideias começam e terminam sem maiores explicações, conceitos são rearranjados e as promessas do início, desfeitas.

Tudo o que o primeiro volume teve de especial como a poética, a violência gráfica estimulada por um amor proibido, desejos impossíveis e supressão de desejo em nome de uma moral são abandonados em troca da falta da estética e de um desejo de acenar muito mais aos fãs dos filmes, dando referências e alterações, do que aos fãs da literatura que conseguia ser muito mais profunda do que o simples horror. Não haveria nada de errado se a ideia fosse envolvida de concretude, mas não há nada além do mal intrínseco das sequências: o temido “mais e maior”. Em resumo, estes elementos estão lá apenas para unir sem maiores pretensões e mostrar que o autor não desconsiderou os longas-metragens do Pinhead.

A trama é confusa e com idas e voltas que mostram que, ao menos aqui, Clive Barker não foi feliz nem no desenvolvimento de roteiro ou com os personagens. Com exceção de dois destes que têm mudanças fundamentais e primárias, todo o resto termina como começa. Não há aproveitamento, não há alto desempenho. O que começa como uma obra de horror de alto nível, diminui o ritmo para um suspense e termina como um “Conta Comigo” aventuresco, como um filme de equipe, mas esvaziado. Até o gore é reduzido à raros momentos e mesmo assim, camuflado. Este ponto, faça-se justiça, consegue ensaiar um retorno às origens sexuais, mas não passa da intenção e, seguidamente, do abandono do autor.

Harry D’Amour tem seu início funcional. Soturno, assombrado pelo seu passado e solitário, mas sofre com a necessidade de mainstream e se torna, de uma hora para outra, brincalhão e fanfarrão mesmo com uma densa ideia sobre seu destino. Ele sofre com diversos roteirismo psicológicos que o tornam não apenas confuso, mas desinteressante e óbvio.

Os personagens orbitais, ou coadjuvantes, são pretensiosos e, mesmo assim, unidimensionais. Talvez seja fácil dizer “mas são coadjuvantes”, não obstante, importante citar que alguns deles estão fixos e até dividem protagonismo desde 2/5 do livro. Alguns aparecem como grandes ideias e são simplesmente limados da história ou estão lá com desfechos irrisórios. São rasos e pouco importantes. Os acontecimentos com eles não têm peso, sequer uma consequência significativa. E essa falta de repercussão é sentida em quase qualquer outra situação, tornando-se vago. Há de se reconhecer que a existência de três personagens LGBT’s tem lá seu valor, mas não há, proceduralmente, nada que os valorize quanto indivíduos.

Pinhead

Agora, o pior da área de personagens está, nitidamente, para Pinhead. Barker acerta ao dar ao Cenobita ares individualistas, maquiavélicos, mas que se tornam previsíveis com o passar do tempo. Ele é um personagem que incautos chamarão de enigmático, mas eu arrisco a dizer que ele é mal desenvolvido. Não há explicação para que ele esteja desgarrado da Ordem, ou sobre a alteração de sua motivação já que, originalmente seu status quo é viver em função de afligir sofrimento a quem abra a Caixa de Lemarchand, também não é citada a mudança brusca de personalidade e nem mesmo porque seu sexo foi alterado. Este último começa a ser pincelado no começo, porém, como outras boas ideias de Barker em Evangelho de Sangue, é escamoteado sem mais nem menos.

Clive Barker é um escritor de escala macro, sem aprofundamentos nas descrições e isso é sentido no início da obra. Todavia, ao haver uma alteração brusca na ambientação, ele se rende à possibilidade ser descritivo, previsível e detalhista de uma hora para outra, o que não funciona pela diferença crateral estilística apresentada de forma errática. E a partir disto, esta mudança em sua narrativa segue até a última página. Infelizmente, o autor detalha o que não precisava e raras as vezes acerta nos momentos que isso realmente se torna necessário. É errático, pormenoriza o essencial e, no fim das contas, torna o menos em mais quando ser menos seria o suficiente.

Há mais.

O Inferno da obra tem pouquíssima originalidade, flertando com o ideal dantesco, mas não impressiona, além de sua importância na história ser questionável e alongada demais. Os problemas de “humanização” do lugar também existem. Este inferno é lugar civilizado, com cidades, florestas, hierarquias, trabalhos, e (pasmem¹) demônios bons e apegados. Existe pelo menos um destes que se torna protetor (pasmem²) de um humano e outros que ajudam pessoas. Até existe uma explicação para o fato do lugar ser agradável, mas vai totalmente contra a existência dos Cenobitas, estes aliás, são praticamente suprimidos e limados, com raras e rasas citações.

Clive Barker, o criador de Hellraiser

Já a dificuldade de Barker em criar espaços geográficos e seus elos que funcionem na imagética é gritante. Seja na Terra ou no Inferno, você não consegue linkar as localizações dos personagens. Tudo também parece muito perto para, logo em seguida, soar muito longe. A velocidade com que se viaja de um recanto a outro varia muito com a necessidade do autor de enrolar a trama ou não, sem auxiliar o leitor na noção de localização e do quanto precisa-se para chegar onde é necessário. Ironicamente, mesmo com o excesso do tom descritivo, às vezes os locais soam muito parecidos.

E para terminar, vamos ao nosso momento Stephen King: Clive Barker simplesmente não sabe a hora de acabar a história. São pequenos desfechos atrás de pequenos desfechos que depois se revisitam interminavelmente em suas páginas e por fim, acabam. Chega a dar desespero quando se percebe que há 30 páginas para que o final chegue e Barker ainda esteja forçando o leitor a se despedir de quem já não agrega mais à história. Se a obra era a promessa de fechar a história de Pinhead, não era necessário agonizar a narrativa.

Eu poderia citar mais três pontos aqui, mas como envolvem spoilers, não falarei deles.

Isto posto, Evangelho de Sangue começa muito bem, mas se perde antes mesmo de chegar à metade. É presunçoso, inchado, cansativo, raramente impressionável, de imagética irascível (tirando a violência gráfica), com uma história furada e de narrativa errática e pouco proveitosa. Dá-se a impressão que é um caça-níquel muito mais do que uma obra que respeite a literatura e suas nuances. Tentando ser diferente, apenas perde em conteúdo, abrindo possibilidades mais para ligar os filmes à obra do que apresentar algo realmente consistente. E se é verdade que sequências são avaliadas em detrimento de suas antecessoras, que fique aqui cravado duas certezas: A primeira é que Renascido do Inferno continuará, dentro de sua mitologia e dos livros de horrores em geral, insuperavelmente fantástica e atual. E a segunda é que Evangelho de Sangue sempre assustará, mas muito mais pela sua ruindade.

NOTA: 3,0

É isso. Espero que tenham gostado.
Abraços e boas leituras,
Saitama de R’lyeh

OBS: Harry D'Amour, o protagonista do livro, é um personagem que já apareceu em outras obras de Clive Barker, assim como em pelo menos um filme adaptado dos escritos do autor. Porém, como isso é altamente irrelevante para a obra, suprimi a informação e deixo o registro fora da crítica. 


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