quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Cinescópio #2: Mignonnes

Vocês pediram e aí está: Polêmica. Aproveitem. 

Título: Mignonnes
Ano: 2019
Direção: Maïmouna Doucuré
Roteiro: Maïmouna Doucuré
Elenco: Fathia Youssouf, Medina El Aidi, Esther Gohourou, Ilana Cami-Goursolas, Myriam Hamma, Maïmouna Gueye

Onde posso ver: Netflix

Aviso:  Este texto contém suaves spoilers da obra.

Como sempre, à sinopse: Amy é uma imigrante que veio com sua família muçulmana – mãe e irmão – do Senegal para a França. Até que descobre que seu pai está para reencontrá-los com uma segunda esposa. Ao renegar a situação, Amy descobre na dança uma maneira de desafiar os velhos costumes enquanto conhece um novo mundo, que talvez seja cedo demais para descobrir. 

 

CRÍTICA

Vou começar repetindo uma parte do meu texto do Cinescópio #1 (que você pode ler AQUI), quando falei dO Farol: “Filmes são feitos de intenções. Eles podem divertir, confundir, causar sensações estranhas, incomodar, até mesmo excitar ou entediar.” E este conceito é trazido com força aqui. O filme busca causar uma sensação e mais do que isso. Ele quer ir além e dar um debate, gostemos ou não disto.  

A diretora Maïmouna Doucuré, uma francesa de origem senegalesa – muito semelhantemente à protagonista do filme – fala sobre extremos e como a feminilidade está presa aos estereótipos, mesmo que sob um falso pretexto de liberdade. Sim, o tema é complexo. E não, o filme não é gratuitamente expositivo. Eu não vou entrar no espectro político que o longa tomou nas discussões, porém eu posso afirmar com toda a certeza de quem viu a construção da personagem até o final: A obra se presta a condenar os caminhos mais impactantes. Vamos separar uma ideia de mensagem das hipérboles da internet.

 


Talvez eu esteja me afobando muito ao falar já das conclusões do filme de maneira pincelada. Preciso ir com um pouco de calma e analisar com mais detalhes para que vocês tenham melhores parâmetros do que Mignonnes é ou não.

Tecnicamente o filme é rodado de maneira extremamente simples e nota-se uma certa crueza de Doucuré. Há muitas edições nas cenas que poderiam apresentar maior densidade sendo takes sem saltos – que incomoda às vezes – , cortes temporais que são um pouco grandes demais – que incomoda às vezes –² e diálogos simplórios, porém não desprovidos de certa carga emocional. Esses pontos têm qualidades e defeitos, mas contribuem para o filme em seu todo. E no frigir dos ovos, muito ajuda quem não atrapalha. Portanto, é bem possível dizer que dentro destes pontos que a diretora usa para manipular sensações, não compromete.

 A diretora também se vale muito da confiança que tem nas atrizes mirins que, na maioria das vezes, carregam bem seus papeis. Isto é visível no excesso de closes que ela dá nas expressões das meninas. Ela, na prática, depende da vivacidade da idade em que estão, para dar às personagens a autenticidade necessária. São adolescentes sendo adolescentes em frente à câmera. Nessa construção narrativa que busca trazer realidade há muita volatilidade nas relações sociais, catarses, confusões emocionais, assim como seus picos. E também são muito condenáveis nas atitudes. Não há heroísmo ou vitimismo. O filme – ainda bem – foge dos estereótipos o máximo possível e o faz muito bem. É impossível não se identificar com algumas das instabilidades apresentadas, ainda que as motivações sejam diferentes das nossas. Dou destaque para Fathia Youssouf (Amy) e Medina El Aidi (Angelica) que do grupo que participam, são as que mais aparecem. O resto das garotas estão ok. Causam uma certa ojeriza aqui, fazem um bully aqui, mas não dão uma somatória real quanto interpretação, ainda que ajudem a contextualizar o universo de Amy.

Já que falei na protagonista, a atriz Fathia Youssouf faz um ótimo trabalho. Ela entrega exatamente o que se espera num drama como este. Expressa bem os sentimentos com os olhos, em especial numa cena em que está escondida debaixo da cama da mãe e não pode ser descoberta. É de cortar o coração pelo impacto que a cena tem na revelação subsequente. Em silêncio ela chora e a dor é visível. Já em outros momentos a atriz-mirim explode em alegria ou raiva e praticamente carrega uma cena sozinha. Isto não é pouco, se formos ver a idade de Youssouf (11), à época do filme.

Porém a menção honrosa do longa, na minha modesta opinião, vai para Maïmouna Gueye, no papel de Miriam, a mãe da protagonista. Apesar das aparições pontuais, há uma veracidade pungente na interpretação. Há mais do que apenas a representação de falas ali. Ela consegue – e talvez seja a única no filme a fazer isso – passar uma segunda camada de resignação não apenas à situação religiosa imposta, mas à rebeldia repentina da filha. É quase como se a personagem gritasse através de Amy, mesmo quando precisa repreendê-la. É tarde demais para Miriam, mas não para Amy. Esta opção é dada pela mãe à filha de maneira muito discreta mais ao final do filme e de maneira narrativa muito sutil, mas está lá.


Agora sim, vamos às polêmicas.

É importante frisar mais uma vez o teor da história: De início acompanhamos a rotina de Amy, uma menina de 11 anos que está passando por um momento delicado em casa com sua mãe e irmão mais novo, todos muçulmanos, ao terem de lidar com uma notícia-surpresa: Seu pai terá uma segunda esposa, o que deixa ambas infelizes e inseguras. Seria falho deixar esta parte apenas na sinopse já que ela é parte fundamental do filme e das vazões que isso traz. O conceito é simples: A pré-adolescência/adolescência costuma ser transgressiva. Raros os casos que isto não acontece. Há o exagero, o desejo de liberdade extrema e a revolta com o sistema a qual pertence. Este é o padrão e, por favor, não vamos usar de máscaras aqui e dizer que isso não acontece. A sexualização é parte deste processo e sempre fará, já que a curiosidade e o início da lascívia está mais ou menos nessa idade já citada no início do parágrafo.

Evidentemente, o aspecto sexual acaba sendo uma arma de Amy contra o sistema religioso a qual está acorrentada. Esta batalha, que traz mais ônus do que bônus, em determinado momento é mostrada como desigual à protagonista. Não há preparo para ela e toda e qualquer benesse que a “liberdade” da sua fuga traga, acaba demolindo muito mais do que sua moral. O exagero, sob a ótica de Doucouré, entrega faturas bem mais sombrias. E nisto reside a divisão: Se entregar à religiosidade que não atrai, ou persistir nos erros da sexualização. De qualquer maneira há um “copia e cola” moral que a diretora expande à nossa visão. Amy está condenada a seguir um padrão de qualquer maneira.

A maioria de nós aqui no blog não é uma garota, então não sabemos com exatidão que tipo de estigma uma mulher carrega na sociedade, na maioria dos casos. Não sabemos o que é sempre ter que ter um padrão de beleza cobrando alguma coisa, seios firmes, bunda empinada e todo o resto que sabemos que existe. Olhando friamente, há todo um ecossistema que se vale disto e que valoriza uma determinada desvalorização de si em prol do causar e, assim, ser alguém quando uma origem humilde e difícil faz sombra às possibilidades futuras. Isto é sentido no filme. A sensualidade que Maïmouna Doucuré mostra, não apenas tem sentido como serve como um meio para uma mensagem: A sexualidade tem momento certo e não deveria ser mercantilizada. O longa apresenta isso com seus contras e supostos prós que uma pré-adolescente consegue enxergar e suportar. E é disso que o filme se trata: Uma menina presa nos problemas dos adultos e que acaba caindo na solução dos adultos e que se torna obsessão. Há uma vilania nisso muito latente, mas uma vilania com sabor de certeza de ser o lado certo da equação. Acreditem, é assustador quando vemos um Thanos querendo dizimar metade de um universo porque acredita numa bondade própria, mas é ainda mais assustador ver uma menina de 11 agindo de maneira absolutamente errada porque acredita que este é o caminho que vai libertá-la dos problemas familiares que são apresentados de forma plástica (que servem mais para ilustrar a desilusão do que apresentar consequências realmente sérias). O micro é bem mais apavorante porque é muito mais relacionável.

Importante citar: Sim, a hipersexualização está lá mesmo que não seja tão alarmante quanto se prega por aí. As personagens ainda carregam certa inocência que a maioria do mundo real já se esqueceu. No filme as garotas estão falando de sexo, pênis (todo mundo dessa fase já falou de sexo com os amigos, nada de novo no front), rebolando para chamar atenção dos jurados, mas se chocam horrivelmente com a amiga que mostra a vagina nas redes sociais numa atitude impulsiva. Isto serve justamente para incomodar e abrir o precedente para discussão: Estamos prontos para lidar com isso? E o incômodo pode ser sentido no clímax terceiro ato quando elas dançam da maneira mais sensual possível, imitando aquilo que viram nos vídeos do celular, porém para um público que não quer ver isso. O resultado é vaia, negação e pessoas abismadas com toda essa petulância infantil. Então a reposta para a pergunta é amarga. Há um sonoro “não”, já que nenhum personagem do filme discute o assunto e quem testemunha o acontecimento não consegue criar civilidade o suficiente. Neste ponto, Doucuré foi genial. Ela permite uma certa apatia interna, para que o externo, ou seja, o público, discuta o assunto.

A diretora Maïmouna Doucuré recebeu ameaças de morte por causa das propagandas da Netflix
A diretora Maïmouna Doucouré recebeu ameaças de morte

Pode-se, sim, questionar o método. Gráfico demais? Eu não achei, mas vá lá, tenho 36 anos. Já vi muita coisa na vida: Mini Lady Gaga, Maísa menina de tudo e sem freios, Mini Carla Perez, Mulekada, Domingo Legal com sua Banheira do Gugu à toda nos fins de semana. A sociedade evoluiu a ponto de não aceitar que qualquer coisa tome conta de sua TV ou tela de CPU, mas é uma evolução paliativa quando se trata do debate em forma de filme. Quando eu era mais novo acompanhei algo semelhante a este “””choque””” atual. Foi nos anos 90 e veio na forma de Kids, um filme pesado que mostrava o fardo da sexualização precoce uma geração antes, incluindo o fantasma da Aids sobre os personagens. Polêmico? Sim. Importante? Com certeza. Resolveu? Não. Infelizmente somos uma sociedade que não aprende tão facilmente, foi apenas um discurso moralista sobre o que deve ou não ser produzido. Hoje a história se repete. Arte é questionável como objeto qualitativo, mas não censurável.

Então, qual a lição que fica disso? Se não estamos prontos para debater os malefícios da sexualidade fora de hora, o que sobra? Provavelmente uma esperança vã. O final do longa deixa claro seu posicionamento de forma silenciosa e respeitosa da terceira via, mas aí é tarde demais. Finda-se uma alegoria do mundo real em prol de vereditos pré-concebidos e um ódio que resultou até mesmo em ameaças de morte à diretora.

Isto posto, Mignonnes é um filme simples na metodolgia, com poucos apuros técnicos e sutis intervenções negativas, mas cunhado de conteúdo. É uma obra madura que se preza a apontar para uma questão atual: o peso das influências negativas num mundo onde há poucas referências positivas com que se lutar. É solitário e entristecido numa sociedade que regra de forma negativamente cabal cada pedaço do que acreditamos. Usa-se, de forma objetiva, dos elementos visuais pelo entremeio da mensagem em si e não pelo fim. Isto é tão claro e nítido, mas que sofre demais com o obscuro moralismo daqueles que se doem de um material adulto, feito por um adulto, para que adultos conversem entre si.

NOTA: 8,9   

Então é isso. Espero que tenham gostado da crítica. 
Abraços, 
Saitama de R'lyeh

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