domingo, 10 de maio de 2020

Cinescópio #1: O Farol




Título: O Farol (The Lighthouse)
Ano: 2019
Direção: Robert Eggers
Roteiro: Robert Eggers e Max Eggers
Elenco: Robert Pattinson, Willem Dafoe e Valeriia Karaman
Fotografia: Jarin Blaschke
Trilha sonora: Mark Korven

Faz tempo que não avalio um filme, então posso estar enferrujado. Perdoem – ou corrijam – qualquer escorregão que vejam aqui.

À sinopse: Dois faroleiros, um experiente e outro iniciante, tem uma relação conturbada longe do continente enquanto coisas estranhas acontecem na ilha onde o farol, que precisam cuidar, fica. Seriam acometidos de loucura ou seria este um segredo bem guardado prestes a ser desvendado?

CRÍTICA

Filmes são feitos de intenções. Eles podem divertir, confundir, causar sensações estranhas, incomodar, até mesmo excitar ou entediar. Quem sabe tudo isto junto, dependendo da interpretação e de quem assiste. O processo é sempre pessoal. O que se torna certo é a intenção do seu idealizador e nisto, Robert Eggers usa diversas fórmulas num único longa.

Para começar, vou dar uma pincela mais rápida na tecnicalidade porque, apesar de eu ser fascinado pela forma maneira visual que um filme é contado, há muito mais a ser dito do isto, mesmo que tudo seja de extrema importância. Entre elas, posso elencar a maneira que a filmografia reflete filmes antigos e quadrados de 4x3, incluindo takes e uma fotografia preta e branca que saturam em prol do suspense. Como somos habituados a filmes em formatos retangulares, os widescreens atuais, os 16x9, aqui há uma centralização mais evidente à tela que torna os detalhes menos evidenciados diante das ações. Assim, Robert Eggers, apesar de ter seu foco na história, tem uma nítida intenção de focar nossa atenção diretamente aos sentimentos dos personagens ao, muitas vezes, colocando-os exatamente no meio do Terço em planos mais fechados, assim como também os enquadra de forma tradicional ao abrir a câmera, deixando as expressões nos encontros de segmentos, e a expressão corporal flertando no plano central. Segue abaixo alguns exemplos que fiz para melhor didatismo.

Terço padrão

Terço padrão

Terço centralizado

Terço centralizado

Essas variações parecem um tanto confusas (só eu sei como me bati com isso no início da minha vida com a fotografia), mas acredite, mesmo que você não entenda nada disso de maneira consciente, seu cérebro capta a mensagem que as imagens querem passar. Por isso que ainda que haja um estranhamento, a sensação é familiar. Esse processo de redução de espaço, conjuntamente ao processo dos Terços já citado, torna o aspecto visual nitidamente opressor.

A trilha sonora aqui é próxima da repulsiva. Sons ambientes trazem uma sensação de algo errado, deixando a dúvida se a loucura é dos personagens ou se há algo de podre que permeia a ilha já outras vezes um som orquestrado em forma de ruído ocorre lenta e longamente. Portanto, se os sons são cirúrgicos em cutucar, o silêncio quebrado pela chuva ou ondas do mar inquietam e reforçam a sensação do estranho sobrenatural, se é que ele realmente existe aqui.

Eggers usa esses elementos que comentei para transformar o filme em algo um pouco mais claustrofóbico, tensional e, como consequência, brincar com as inferências do que não se vê. Isso não torna o espectador parte da história, porém existe a intenção em incomodá-lo ao dar a quem assiste uma ótica tão próxima com uma propositiva instabilidade, seja na interpretação, seja no roteiro.


Ao falar do processo interpretativo, é preciso compreender que Willem Dafoe aqui não faz nada muito diferente do que ele já fez em metade de sua carreira. A loucura, os olhares extremos, o sorriso que se evidencia com a fotografia P&B. Tudo isto já foi visto antes, porém o poder de imersão que existe é muito mais visível nas subcamadas do personagem com seus segredos, potência e persuasão, assim como uma evidente tensão sexual com o personagem de Robert Pattinson. Dafoe entrega o básico, mas se tratando dele, é perfeitamente cabível dizer que este básico continua impressionando, inclusive quando seu poderio poético vem à tona. Há uma sequência sem cortes onde o ator profere palavras fortes e que demonstra toda a capacidade que ele tem de transformar o ridículo em algo assombroso e denso. E isto vale também à toda instabilidade que seu personagem carrega juntamente com as incertezas e inseguranças que transmite. Tanto na voz quanto na fisicalidade, estas variações passam uma mensagem poderosa. E esta cartilha é seguida religiosamente por Dafoe até o fim do filme.

Robert Pattinson entrega uma interpretação concisa e comprometida com a qualidade. Elogiá-lo é mais que merecido pela postura introvertida e fracassada que imprime ao seu personagem, assim como sabe dar a teatralidade quando necessária. Estes picos, para mais ou para menos, servem como contraponto a Dafoe e realmente funcionam muito bem e ancorando o personagem e sua ótica sobre os acontecimentos do filme.

Se O Farol consegue entregar tanto, parte disso está no foco de uma relação que já começa desgastada. O paralelo não é nem um pouco exagerado: os protagonistas parecem um casal que luta para manter uma união que morre vagarosamente. A relação metafórica da homossexualidade que recebe contornos mais óbvios eventualmente reforça o abuso e o amor que recebe este abuso. Aqui, elas são intercaladas pelas discussões, um certo flerte, confiança e certas “verdades” que, quando ditas, causam explosões conjugais. A bebida serve como catarse a isto: Velhos amantes sem tesão, mas que encontram em terceiras vias, o sexo. A maior evidência disso está tanto nos objetos fálicos do filme, como o farol (numa cena que muda a rotação da câmera verticalizando o mesmo em simbólica ereçãoe uma pequena imagem encontrada, até a explicita demonstração de uma vulva como objeto de desejo.


Já que falei do sexo, a masturbação tem papel periférico como válvula de escape. Nela há um horror discreto, muito mais focado em causar desconforto pelo que faz o espectador imaginar acontecer do que realmente mostrar. Não causa excitação, tampouco constrangimento. Mas a sensação de prazer, ainda que exista uma aparente inclinação com a dor, é real.

É fato que O Farol se permite à muitas interpretações. Seja uma visão bíblica sobre pecado e castigo, mitologia grega, loucura, sobrenatural e até mesmo o horror cósmico de Lovecraft. Este último, tem presença marcada como homenagem e não como objeto central. O que há de Lovecraft, em essência, é um claríssimo pastiche debochado. Enquanto seus protagonistas eram a moralidade assexuada e de bons costumes que aos poucos iam cedendo à loucura (ou não), Robert Eggers retira os elementos sociais ao trazer a víscera que ofenderia H.P. Lovecraft: a provocação desde o início à desejo.

Eis aí um erro do filme: sua prepotência ao abraçar tantos vieses e não deixar claro exatamente por qual caminho segue com exatidão. Prefere-se dar diversos elementos de muitos gêneros e vertentes e ainda que consiga passar a mensagem final, confunde-se e explica-se sem nortear o espectador em seu trajeto. Isso causa distanciamento e precisa de um grau de elasticidade narrativa que os mais casuais não comprariam. Significa que o filme é falho? Não necessariamente. Na verdade, demonstra que sem uma história clara para o público em geral, O Farol se equilibra mais no poder das interpretações à primeira vista e depois no roteiro que dá muito mais nos detalhes do que no senso geral. Ou seja: É um filme que exige ser esmiuçado para que possa ser apreciado em sua totalidade. E quantos realmente fariam isso? Não por menos, o longa divide o público facilmente. Há os que esperavam algo a mais, há os que tiveram exatamente o que se esperava. Quem está certo? Ouso dizer que ambos. É um filme aberto e quando a abertura existe, as conclusões tendem a variar entre o agradável e o odioso. Não há exatamente um demérito nesta diversidade de achismos, porém, é plenamente possível afirmar que essa falta de tirania diretiva afeta e como produto final, se compromete suavemente.


Há alguns outros escorregões de roteiro aqui e ali, mas é muito mais ligado às cenas específicas e que dariam spoilers sobre a trama, algo que não falarei aqui e vou evitar um tom mais genérico. Pode passar batido a quem não se atém aos detalhes, mas em um filme que suprime tanto o formato, exigindo atenção de quem o assiste, ficaria surpreso se alguém não percebesse pontuais incoerências.

Isto posto, O Farol é um filme aberto às discussões e é de encher os olhos como experiência visual dentro de uma simplicidade que remete aos tempos antigos do cinema. Discretíssimo no horror, focado no terror paulatino e numa crescente tensão que as excelentes interpretações de Robert Pattinson e Willem Dafoe entregam, há muito mais interesse no intrínseco das construções de seus personagens. Não é um filme que transforma a vida de uma pessoa ao assisti-lo, mas se propõe a expandir horizontes e dialogar com possibilidades ainda que não seja 100% assertivo no caminho trilhado.

Nota: 8,3

Então é isso. 
Espero que tenham gostado. 
Abraços, 
Saitama de R'lyeh

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