sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Saitama Critica #18: Malorie


A pouco mais de um ano atrás eu fiz uma releitura de Caixa de Pássaros (que tem filme na Netflix) e reconfirmei toda a inabilidade do autor Josh Malerman neste livro de 2015. Apesar dos pesares (e da nota baixíssima que dei) a trama tem lá seu charme e fiquei curioso para ver quão o autor teria que se superar na sequência que aqui está. Afinal, não teria como ser pior do que o primeiro, certo? Certo? Então pensei “quem sabe eu leia o segundo”.

Caso você queira se ambientar neste universo para maior compreensão desta obra, leia o texto do primeiro livro AQUI

EDIÇÃO FÍSICA

Lançado em 2020 pela Editora Intrínseca, Malorie tem 288 páginas papel pólen soft, as páginas amarelas lisas, e uma capa cartonada que nem parece conter a cara da Sandra Bullock estampada nela.

Não foram encontrados erros de ortografia.

CRÍTICA

Inevitavelmente, à sinopse: 12 anos depois de ter chegado a uma comunidade segura no Instituto para Cegos Jane Tucker com seus dois filhos, Malorie está novamente isolada do mundo num pequeno acampamento. Algo deu terrivelmente errado, as pessoas estão mais perigosas do que nunca e as criaturas que as enlouquecem se multiplicaram, mas ainda assim ela sobrevive juntamente com os agora adolescentes Tom e Olympia. Até que um dia ela recebe a notícia de que duas pessoas das quais ela achava estarem mortas há muito tempo podem estar vivas e ela precisa decidir entre ficar onde está, em relativa paz, ou arriscar tudo numa jornada perigosa (e adivinhem só o que ela vai fazer?).

Antes de qualquer coisa é importante citar o seguinte: Caixa de Pássaros foi publicado, nos EUA, em 2015 e, portanto, sua sequência, lançada em 2020, naturalmente vem 5 anos depois. Josh Malerman produziu outras coisas nesse meio-tempo, então o mínimo que se esperava era que sua escrita tivesse evoluído de lá para cá. Seria o caminho mais natural que Malorie tivesse mais o que agregar ou até mesmo mais a surpreender, por mais que fosse produzido logo depois do sucesso da adaptação da Netflix e que soasse apenas um roteiro pronto para uma sequência. Naturalmente, este novo livro teria tudo para ser considerado, por este rancoroso, a consequência de um oportunismo.

Mas não é. Ao menos não em seu todo, felizmente.

Malorie (que vou colocar em itálico quando se tratar do título da obra e não do nome da protagonista) não apenas consegue ter mais identidade do que seu antecessor como, milagrosamente, é também melhor.

Josh Malerman abandona, em partes, o que não funcionou em Caixa de Pássaros. Na área textual, a narração em terceira pessoa desta vez é Linear, sem bate-volta insosso entre passado e presente. É bom ver aquela intermitência do primeiro livro ser descartada definitivamente, já que ela não funcionava, deixando assim a fluidez um pouco mais assegurada e confortável. A Linguagem Semiótica (aquela que repassa a simbologia das palavras de forma literária) é um pouco mais direta, porém com alguns cacoetes e muletas narrativas que enjoam, como repetição de termos e circunstâncias (não referentes à Catáforas ou Anáforas, que são palavras para falar do que já foi dito no texto ou elementos que ainda serão apresentados) para mostrar o efeito que aquilo tem no personagem e frases separadas por pontos finais numa clara tentativa de tensionar o leitor.

Narrativamente Malorie tem mais pessoalidade, prova de que o primeiro livro, conforme eu já havia dito na crítica anterior, falhou miseravelmente em apresentar uma protagonista relacionável de maneira plena. Malorie é uma protagonista ruim no pior sentido da palavra. Robótica, incompleta, sem uma funcionalidade teatral clara na Tragédia (no sentido grego de gênero dramático) e por isso, com uma relação difícil com o leitor. Aqui, mesmo 12 anos depois do final do primeiro livro, há poucas camadas posteriores dadas a ela, a não ser um certo endurecimento diante das dificuldades e uma paranoia aos acontecimentos do clímax de Caixa de Pássaro. O trauma é grande, porém falta um tom mais gradativo. Há o motivo, há o porquê, mas Malerman ainda peca na organicidade da protagonista. Tudo nela parece mais encaixado porque sim do que por algum motivo mais plausível. Em resumo, Malorie parece mais uma personagem literária do que alguém que existiria num mundo pós-apocalíptico.  Ao menos o autor segue à risca o Húbris/Ate/Nêmesis dela (que você pode ver o significado no Glossário Informal deste link AQUI, ao final da matéria) e funciona bem enquanto causa interesse, mesmo que ela martele essas etapas constantemente durante suas digressões, que são muitas.

Algumas facilitações são repetidas desde Caixa de Pássaros até aqui: O dom quase divino dos filhos de Malorie, Tom e Olympia (Malorie os batizou assim em homenagem aos amigos mortos), de ouvirem e extrair informações incrivelmente precisas, sendo que Tom consegue saber quando a irmã está de venda no rosto porque, segundo ele consegue “ouvir o tecido roçar na pele”. Ou ouvir um alce andar por perto e distinguir se ele está louco ou não apenas pelo barulho que faz quebrando as folhagens, ou ouvir um caminhar específico dentre vários e saber que aquele passo é da mãe deles. Há uma boa subversão de expectativa nisto em determinado momento, mas enquanto explica sobre A, o B continua sendo super-hiper-mega incrível e é isso. Praticamente um sonar ambulante. Outro ponto é um plot twist específico que diminui e muito a inteligência do leitor. Sem spoilers, mas a suspensão de descrença aqui é esticada ao limite da lógica.


Outro ponto que incomoda é o entra e sai de personagens de maneira abrupta. Isto já acontece no primeiro livro, mas aqui essa facilitação é institucionalizada pelo menos quatro vezes com gente que carrega algum tipo de relevância. Isso denota uma preguiça narrativa em dar fim ou trabalhar o suficiente para que sua saída ao menos faça sentido. A impressão que fica é que, se isso é proposital, Malerman os guarde para uma sequência, como fez ao menos uma vez em Caixa de Pássaros e reverbera em Malorie. E em uma dessas circuntâncias é nítido que Malerman está não apenas brincando com a protagonista, como também aparenta manipular o leitor. Sem spoilers mais uma vez, mas me senti altamente subestimado nesse momento.

A trama também tropeça ao apenas apresentar peças de maneira paulatina demais e com mistérios em demasia. As criaturas prosseguem sem o mínimo de entendimento mesmo que a gama de personagens que as vejam aumente demasiadamente, não há descrição, origem, os motivos pelos quais estão entre nós e nem porque fazem o que fazem. Por que não interagem? Por que apenas observam? Querem nosso mal ou não? Em dois livros seria o suficiente para que o autor apresentasse ao menos algumas respostas, mas todas são sumariamente negadas ou deixadas às intepretações variadas, sem um norte claro. O que me faz pensar se Josh Malerman sabe o que dizer sobre o assunto ou se está levando em banho-maria o quanto pode enquanto tenta achar uma lógica num horror cósmico que é realmente difícil de fazer sentido.

Mas no geral, é imperativo frisar que a obra se sai bem. Malorie tem peso e sua intenção é um pouco mais clara que a antecessora. Se em Caixa de Pássaros o horror cósmico (enlouquecer com aquilo que não deveríamos ver) e um certo sobrevivencialismo são os pontos principais, aqui o que existe é muito mais uma trama focada na família e suas inter-relações pessoais e desgastes, ou seja, o micro ao invés do macro. É a família que move o início, meio e fim do livro e se Malorie, conforme dito mais acima é uma personagem ruim individualmente, ela funciona como a matriarca. O coletivo em torno de Malorie é o que dá sentido a ela, embora os personagens em si não dependam tanto da mesma narrativamente. Seria plenamente possível uma obra toda dedicada a Tom ou a Olympia, mas daí provavelmente teríamos os mesmos problemas que Malorie sofre, mas em outros personagens. Malerman trabalha melhor os coadjuvantes e isso já ficou claro antes.

O tom também é mais suave, indo mais para a tensão e o drama do que propriamente o terror, horror e gore. Essa mudança é bem-vinda e causa até um certo estranhamento, porém é propositiva e casa com a busca de se renovar. Não é exagero dizer que Caixa de Pássaros desgasta a própria fórmula por não entregar 100% daquilo que promete, então esse lado mais construtivo pondera a possibilidade de trazer a amenidade como objeto principal. A busca pelo passado de Malorie tem a missão de dar certa paz. O medo é o inimigo desta vez e não um meio para alcançar um fim. Não que não haja esse tipo de situação, mas definitivamente o livro não está focado em causar pavor. Ao mesmo tempo que as criaturas prosseguem um mistério, as ações dos homens vão ficando cada vez mais claras, o que poda toda a possibilidade de surpresas apavorantes e isso é muito bom dada a coragem de Josh Malerman em se arriscar de maneira consciente e responsável.


Já que falei de família, esse núcleo passa bem a sensação de isolamento. O autor consegue traduzir isso em desconfiança de todos que se aproximam dos três e isso já é um avanço em sua escrita. O leitor desconfia, procura intenções e se ressente ao ser enganado pelos estranhos que não fazem parte do núcleo principal. Tom, Olympia e Malorie são a cola que une tudo, ainda que imperfeitos diante da metodologia do Josh Malerman. Ao sair desse escopo, vemos ou buscamos o mal, sem confiar em quase ninguém. Se há algo que Caixa de Pássaros fez muito bem em sua história foi mostrar que não se deve abrir a porta para quem bate, ou alguma coisa muito ruim pode acontecer.

Mas o maior acerto da obra está em expandir o mundo apresentado sem necessariamente crescer o tom midiático da obra. Não é exagero dizer que ele consegue, inclusive, causar terror usando apenas o elemento da venda ou o fato de alguém estar desempenhando alguma atividade no escuro. Isto fica mais evidente durante todo o Clímax do livro que não tem pretensões de ser grandioso ou metafórico. Ele se presta apenas a dar continuidade – e desfecho – às tensões que se iniciam durante o Conflito (Livros são divididos em Apresentação, Conflito, Clímax e Desfecho). Essa proficiência rende resultados: A escala menor consegue ser mais direta, familiarmente conflituosa e, ao mesmo tempo, emotiva. A decisão de Malerman em evitar conflitos diretos acaba dando a Malorie um ar conceitual de novos tempos. Ao falar insistentemente em “novo mundo” o autor acerta em dar uma nova roupagem a este termo e novos caminhos. Apesar do Desfecho ser aquém em pelo menos um ponto específico (o que eu falei sobre Malerman subestimar e brincar com o leitor?), as possibilidades para uma continuações são reais e inúmeras. Cabe dizer: Houve uma certa superação de Josh Malerman em quebrar expectativas e se não é um final perfeito, ao menos entrega pontos mais sólidos, melhores e mais didáticos do que Caixa de Pássaros. Talvez, dentro das limitações artísticas de Malerman quanto escritor, isso baste por ora. Resta ver o que o futuro tem a dizer se suas boas ideias perdurarão à franquia enquanto corrige as ruins.

Isto posto, Malorie carece de um protagonismo mais interessante e menos raso ao mesmo tempo que ainda sofre de alguns dos mesmos erros de sempre. Apesar de ser instável, mexe mais com os brios e canaliza melhor os talentos de Josh Malerman, que se ainda precisam ser aparados, começam a se sobrepor aos defeitos anteriormente apresentados. Visivelmente, Malerman parece demorar mais do que outros autores para evoluir, tampouco parece ter nascido para ser um escritor. Porém, contudo, entretanto, todavia, ele está se tornando um. E finalmente estou curioso para saber qual é o potencial máximo disso.


NOTA: 6,5

Então é isso. 
Espero que tenham gostado. 
Abraços e boas leituras,
Saitama de R'lyeh 

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