segunda-feira, 22 de março de 2021

Cinescópio #6: Liga da Justiça - The Snyder Cut

Quatro horas de filme. Quatro horas de Zack Snyder em seu estágio mais puro. E eis a crítica da visão do que deveria ter sido o filme de 2017.

 

FICHA TÉCNICA 

ELENCO: Gal Gadot, Ben Affleck, Henry Cavill, Jason Momoa, Ezra Miller, Ray Fischer, Amy Adams, Amber Heard, Jeremy Irons, J.K. Simmons, Willem Dafoe, Diane Lane, Jesse Eisenberg, Joe Morton, Jared Leto, Robin Wright, Ciaran Hinds
DIREÇÃO: Zack Snyder
TRILHA SONORA: Junkie XL
FOTOGRAFIA: Fabian Wagner


CRÍTICA 

Cotidianamente, à sinopse: Após a morte do Superman, o mundo está em luto e desesperançoso. Bruce Wayne descobre que o planeta Terra está em perigo com a iminente vinda do Lobo Da Estepe em busca das Caixas Maternas e corre contra o tempo para unir um grupo de pessoas superpoderosas, porém disfuncionais.

Eu não vou mentir: Não desgostava totalmente da LJ assumida por Joss Whedon. Ele se aproximou muito da sua vertente pop e com alguma leveza, algo típico de suas direções. Tanto em Vingadores quanto em Buffy, sempre foi possível perceber um compromisso do diretor com a catarse escapista como contraposição ao mundo real e seus fardos, o que em grande parte, é exatamente o que o universo de heróis como Marvel e DC significam em sua essência. Há algumas coisas boas ali, mas que falha por ser justamente um nítido retalho cinematográfico. A verdade é que o estilo de Whedon não combina com o que é Zack Snyder. Para bem ou para mal, obviamente isso afetaria o produto final. Eu adoraria ver, em 2017, uma versão 100% do Joss para a LJ, mas isto foi antes de saber de todo o seu suposto comportamento abusivo nos sets de filmagens.

Então, cabe, logo de início, a seguinte constatação: Eu lamento muito, muito mesmo, por Zack Snyder nunca ter levado seu produto para a tela grande. Porque, nitidamente, é uma carta de amor ao gênero. Não é 100% perfeita, mas ainda assim, vem carregada de uma paixão avassaladora e com um sentimento de algo a provar.

Tecnicamente falando, este é um filme com as assinaturas artísticas de Zack Snyder. As câmeras lentas, as tomadas que usam os terços (que já falei mais profundamente na crítica de O Farol e que vale a pena você dar uma lida novamente AQUI), mas que flertam com os ângulos contemporâneos, com personagens que começam fora da angulação correta e que vão se colocando nos mesmíssimos terços aos poucos. Ele sempre foi um diretor que gosta de contar uma história nos takes e aqui não é diferente, usando do mesmo formato do qual ele se arriscava em Madrugada dos Mortos, por exemplo.

Neste quesito, nunca vi Snyder falar tanto com a maneira de apresentar um filme. O tom sépia que ele usa com frequência em suas produções tem uma perda significativa de cores e com raros momentos de explosão visual, algo que ele já flertava em filmes como A Lenda Dos Guardiões e Sucker Punch, e em LJ ele se aprofunda na intenção da fotografia em trazer um ar de luto e pesar. O corte horizontal estilo cinema dos filmes usuais dá lugar ao corte vertical 4:3. Ele é menos opressor do que o belíssimo A Ghost History de 2017 (feito em 4:6), porém é mais carregado de melancolia, provavelmente, por causa das 4 horas de duração. Acompanhada initerruptamente, como eu fiz durante a madrugada, o filme mostra seu peso. E ao fazer um filme visualmente mais concentrado no centro da tela, Zack Snyder passa a densidade desejada.  

Já que falei de melancolia, o tom é carregado. As tiradas cômicas foram limadas pela metade (quase todas continuam com o Flash), apesar de ainda existirem, mas não vencem o ar saturado, longe disso. Sistematicamente todos os personagens trazem algum pesar e isso denota outra das características de Snyder, que é gostar de contar histórias sobre tristeza. O longa é (re)montado para dar ao espectador não apenas a catarse de heróis com dons quase divinos convivendo, mas de permitir aprofundar seus aspectos individuais. Notoriamente há um ar esgotado por causa de um mundo enlutado (menos no Affleck que está nitidamente no piloto automático), mas isto é quase lugar-comum no universo cinematográfico do diretor. Portanto, existe sim, uma intenção. Dá para correlacionar parte destes elementos ao fato de que o Snyder tinha uma carga emocional antes do falecimento de sua filha Autumm Snyder e após seu trágico suicídio. Isto é tanto sentido que o filme apresenta a questão geracional como fator significativo, ainda que tratado de maneira pontual. Barry Allen//Pai, Victor Stone//Pai, Clark Kent//Mãe, Arthur Curry//Pai & Mãe. Todos trazem a falta, o luto, o pesar, a revolta e a impossibilidade. Tanto que há dois monólogos variantes entre dois pais: Jor-El e Jonathan Kent trazem um pouco do papel do Superman perante o mundo. Ante ou pós-morte, não mudou.  Assim também se deturpa um pouco algumas relações. Alfred é ainda mais ácido e grosseiro com Bruce, assim como existe uma tensão latente entre Vulko e Arthur (algo praticamente limado em Aquaman).

A Classificação Etária de 18 anos me pareceu realmente exagerada. Dois ou três palavrões e violência gráfica muito suave. Esperei algo mais pesado, mas tudo foi tão mascarado pelos ângulos de câmera e por uma poça de sangue aqui ou acolá de maneira mais estilizada que 14 anos seria uma ideia bem mais aceitável. É demérito? Não necessariamente. Mas um pouco mais de experimentação cairia bem, afinal, poucos conseguem dar tanta classe ao sangue jorrado quanto Zack Snyder. 300 de Esparta não me deixa mentir.

Evidentemente, como o filme gira em torno das Caixas Maternas, é de se esperar que a tensão entre gerações se dê, ao menos majoritariamente, com Victor e Silas Stone. Há mais camadas e processos dos quais os personagens precisam passar. No filme de 2017, Ray Fischer não me convenceu nem no papel de filho amargurado, nem mesmo no herói em formação. E aqui existe uma boa motivação, ao menos a mais palpável possível para um escapismo diante do fantástico. Victor Stone está com um fardo tremendo em suas costas e isto é consequência direta de uma atitude impulsiva do pai. O ódio de ser condenado a uma vida diferente (“às vezes morto é melhor”) sem um futuro brilhante é sentida e melhor: possivelmente até lamentada pelo espectador. Victor vai se tornando um personagem dramático onde a perda é um obstáculo ao mesmo tempo que vira um motor para continuar. A própria montagem de Zack Snyder auxilia em tornar o personagem algo bem mais interligado com as Caixas, assim como uma espécie de monstro tecnológico. O seu andar é suavemente desajeitado, quase deficiente e desumanizado. Seus olhares carregam muito mais negatividade, sua fala é mais seca, robótica. Ainda assim, há pessoalidade. Esses adjetivos que acabei de citar e características são inexistentes na primeira versão e que aqui fazem toda a diferença. Por isso o heroísmo de Victor aqui é involuntário, uma busca inconsciente de fazer sentido diante de uma maldição. Obviamente isto encontra seu ápice no final da obra.


Os outros heróis também têm mais espaço: Batman, Mulher-Maravilha, Aquaman... Todos eles recebem tratamento mais decente. Cada um com sua música que diz algo sobre ele, encaixada exatamente no momento certo que leve a alguma reflexão, por mais crua e simples que seja. Em seus momentos de ação e, como não poderia deixar de ser, nas demonstrações de poder. E neste espectro, quem mais recebe atenção é o Flash. Dá para perceber que Snyder não teve muito freio em dar a ele o patamar merecido. Seu poder tem escopo e é imenso. Barry Allen conseguiu se tornar meu personagem predileto e torço muito para que seu vindouro filme tenha o mínimo do aprofundamento aqui apresentado. Sem muitas levezas ou distrações.

Superman tem muito pouco de adicional e, sinceramente, não é exatamente empolgante. Apesar dele ter papel fundamental no “terceiro ato” e dele ter uma tentativa de Snyder torná-lo quase uma divindade moral diante de um mundo caótico, não senti isso de maneira trabalhada. Me pareceu uma pedra bruta e talvez até linearmente fugaz, quase plastificado. Não que não tenha lá seu dinamismo à la Deus Ex-Machina na luta final, mas se você viu o filme de 2017, viu tudo o que foi mostrado em 2021, com exceção do uniforme. Sou entusiasta da filosofia de Man of Steel e Batman Vs Superman, mas em LJ, Clark Kent tem muitos momentos que mais sobram do que contribuem para a trama. Mesmo o reencontro com Lois Lane “ativando” suas lembranças parece ter sido feito à toque de caixa dado. Foi na versão de Whedon, prossegue sendo na de Snyder. Roteirismo, deve ser assim que se chama. 

Falando em gordura, alguns pequenos momentos também ficam sobrando aqui e ali. Mulher-Maravilha, Batman, até mesmo Comissário Gordon sofrem pelo excesso. Parece que o Zack Snyder soltou um enorme “porque sim” para colocar tantas coisas e fez da sua versão não somente algo que agradasse os fãs em seus fan-services, mas que usasse de todas as fichas cinematográficas ao recriar o longa da Liga.

O CGI está realmente ok, tirando um pequeno momento ou outro. O Lobo Da Estepe tem muito mais presença e pano de fundo para vir à Terra e é visualmente impressionante. As motivações são hiperbólicas, mas não há muito com o que se reclamar, afinal, a humanidade encontrada tanto nele quanto em Darkseid é servida de maneira praticamente alienígena, então não temos que nos reconhecer em nada daquilo. São maus “porque sim” e pronto. A natureza deles agrega para isso e faz todo sentido, afinal, o universo dos Novos Deuses é algo tão à parte de todo o multiverso que não faz sentido humaniza-lo a não ser para dar Calcanhares de Aquiles.

Mas talvez o pior erro de Zack Snyder seja não terminar o filme no momento certo. Mesmo com as gorduras, mesmo com auto-superestima com que o longa se trata, nada é pior do que o Epílogo mesmo trazendo algumas subversões. Longo, desconexo e que servia mais para mostrar ao público algumas possibilidades. Instiga a curiosidade? Sim. Mas não fomenta uma necessidade. Até mesmo os personagens surpresa não empolgam e estão muito mais para surpreender visualmente do que o conteúdo propriamente dito. São apenas promessas e que, no andar das notícias, dificilmente terão o potencial explorado. Mas impressionam tão pouco que como começam, terminam. Acabam sendo uma personificação de um dos defeitos mais intransigentes de Znyder que é a própria glamourização. Toda qualidade, em excesso, se torna defeito.

Isto posto, Liga da Justiça – The Snyder Cut é bom e empolga. Com ares episódicos e trama mais aprofundada, garante algumas boas doses de ação hiperbólica e disfuncionalidade sem muitas digressões. É mais profundo, porém mais simples. É maior, porém mais intimista. É defeituoso, mas ainda assim demanda atenção e uma dose de emoção. Zack Snyder lança todas as suas cartas em prol do entretenimento e mesmo não se saindo perfeito, prossegue conseguindo causar sensações adversas e escapar da sombra do fracasso. São quatro horas e seis atos cansativos e um epílogo inútil, mas que terminam com aquela sensação de pesar. A Liga Sépia de Snyder deveria ter sido um pouco mais valorizada.

NOTA: 8,2

Então é isto. 
Espero que tenham gostado. 
Abraços, 
Saitama de R'lyeh

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