quarta-feira, 29 de novembro de 2023

OPINIÃO IMPOPULAR: TAIKA WAITITI E A CULTURA DA REVERÊNCIA-EXTREME

Ontem de noite estava existindo dentro do X, antigo Twitter, e me deparei com a polêmica criada em torno da fala de Taika Waititi sobre Thor. Vou reproduzir o que foi vinculado na mídia geek em geral:

“Eu não tinha interesse em fazer um desses filmes. Não estava nos meus planos para minha carreira como autor. Mas eu era pobre e tinha acabado de ter um segundo filho, e pensei: ‘Quer saber, esta seria uma grande oportunidade para alimentar essas crianças’

Essa era a história em quadrinhos que eu escolheria e diria ‘Ugh'. E ‘Thor’, vamos encarar os fatos – foi provavelmente a franquia menos popular.

Li muita gente indignada com o diretor, afinal, parece que agora é proibido falar mal de personagens com o qual se trabalhou. Taika foi taxado de mal-agradecido, de ingrato, de babaca e de c*zão pelo já conhecido tribunal da internet. Estranhamente, as pessoas decidiram que uma opinião sobre algo que não existe define caráter de alguém. Afinal, como é possível o mundo comportar alguém que critica celulose rabiscada?

Esta questão me devorou as entranhas por algumas horas. Me indaguei como é possível uma pessoa simplesmente opinar e, o pior!, discordar desse pro bono que o universo nerd criou em torno daquilo que gosta. Mas até aí, nada demais. Já vi esse mesmo grupo de gente desocupada diminuir cineastas, minorias, atores e roteiristas por muito menos. O nerd, como um ecossistema que se autoprivilegia, decidiu que pode e deve ser tão implacável quanto Juiz Dredd, tão intransigente quanto Rorschach, tão mortal quanto o Justiceiro e tão taxativo quanto Frank Miller. E não há nada que os faça parar quando o assunto é fúria indômita por uma fala qualquer sobre seu adorado mundinho.

Analisando friamente a fala do Taika, que, como já falei em comentários no blog, errou a mão em Thor Love & Thunder, vi aquilo que sempre vi: Um diretor debochado e de fala afiada em suas entrevistas. Gosto sempre de lembrar que sua formação artística, apesar de ter sido dentro de uma faculdade neozelandesa, foi longe de ser erudita. Taika se envolveu com grupos de comédia em boa parte de seus estudos. Esse laboratório do que viria a ser uma pegada autoral em seus filmes sempre usou do humor ácido como contracultura. Esse elemento está em rigorosamente todos os seus longas. Ainda que boa parte de sua cinematografia esteja focado na perda e no embate do luto geracional (Boy, Hunt For The Wilderpeople, Jojo Rabbit e seus dois Thor’s são odes à ausência e as consequências disso), a comédia sempre foi o veículo escolhido para falar dessas dores. Taika sempre mascarou o humor pastelão como um jeito de superar o drama. Tecnicamente falando, é por isso que seus filmes variam entre causa/drama e efeito/cômico.

É discutível se isso funciona ou não em seus filmes no MCU e, aliás, este nem sequer é o ponto aqui. A grande questão é que este grupo de juízes sociais, formado basicamente de adolescentes e criadores de conteúdo buscando seu lugar ao sol, entendeu que o seu universo de mentira predileto é coisa séria e ai de quem chuta a porta deste localzinho sagrado. O nerd é sério demais para rir de si mesmo e rir com os outros. E isto se dá por diversos fatores: O algoritmo do X, aparentemente, privilegia as tretas. É fácil achar gente se digladiando lá. Outro ponto, que retroalimenta o que acabei de citar, é que os criadores de conteúdo geek da plataforma entenderam que podem colocar o sistema para trabalhar de maneira emergencial. Uma treta rende mais do que falas amenas. Isso os torna refém de um eterno histrionismo que engaja o grupo nerd e os instiga a usar os poucos caracteres que têm para dar comentários taxativos. E acredite, não há ser humano tão disposto a “lacrar” quanto o nerd. Pior do que eles, só os bots de Direita e Esquerda se atacando.

Outro fator importante aqui é que Taika Waititi já se tornou uma figura divisiva desde suas decisões criativas em Thor: Ragnarok. E num contexto onde uma ação define o ser humano para todo o sempre diante dos fãs magoados, é o que basta. Aliás, ele nunca fez questão de agradar ninguém, diga-se em sua defesa. Atacou o SnyderCut, debochou de Martin Scorsese e já afirmou que seu filme de Star Wars incomodará muita gente. Não sobra grupo que o defenda a longo prazo, ao menos fora daquele que olha o cinema como todo e não tribaliza gêneros, gostos e pessoas. Quem olha as coisas de fora para dentro tem, de fato, menos tendência a normatizar a autofagia que é odiar aquilo que se consome. Não é de hoje que artistas estão debaixo desse jugo de ressentidos.

Então, ao ponto: Qual é o problema na fala do Taika? Nenhum. Como ser humano livre que é, ele tem o direito de opinar sem sofrer sérias consequências desde que não ofenda. Nem todo mundo aqui trabalha com o que gosta e já deve ter criticado sua empresa/função/produto em algum momento. Então, por que a fala incomodou tanto? Simples. Criou-se uma falsa simetria entre trabalho e reverência ao universo geek. Isto não é novidade em outras áreas. Muitos atores já atuaram em filmes que depois criticaram seus trabalhos. Jim Carrey, George Clooney, Idris Elba, Viola Davis... a lista é infinita.

E ao colocarmos o ponto de que “Taika ofende aqueles que trabalharam nas HQ’s por décadas”, apelamos para o sentimentalismo. Óbvio que Thor é um grande personagem e que tem histórias memoráveis. Mas não somos obrigados a gostar delas. Isso não é desmerecer quem a fez e esta é uma lógica perigosíssima. Se invertermos ela, não podemos falar mal do Superman elétrico, já que poderemos desmerecer o trabalho de Dan Jurgens, até mesmo do clássico Adam Hughes. Não podemos odiar MoS sob o risco de ofender todo o trabalho de Joey Casey. Não podemos sequer cogitar nos opormos à adaptação da saga do clone, afinal, isso seria uma afronta direta a Tom DeFalco.

Olhando em retrospecto, Tim Burton já disse que HQ’s são complicadas demais e que sequer sabe ler uma. Então ele não atentaria contra todo um grupo que viabiliza a leitura com o didatismo? E se jogarmos Grant Morrison a fogueira? Afinal, ele tece críticas ao Batman e já trabalhou com o personagem. Como falei, a lógica é perigosa e não sei como isso poderia funcionar a longo prazo. Estender crítica ao produto como crítica às pessoas só torna ainda mais extremo um grupo que coloca como prioridade defender produtos de conglomerado. E a fala é real. Como defender produtos em detrimento às pessoas? O universo nerd institucionalizou a intransigência de algoritmo ao mesmo tempo que normatizou a mágoa eterna daquilo que devia ser efêmero.

Porém, de todos os casos que citei, vamos nos atentar ao mais específico deles: Alan Moore.

Alan Moore está há décadas criticando TODA a indústria muito mais do que um “ugh”. Não apenas chama o público de infantilizado (o que se prova muitas vezes), como ainda faz correlações muito reflexivas sobre fascismo e os personagens. São críticas pesadas e que nunca recrudesceram com o passar dos anos e que não há o menor sinal de que isso vá acontecer. Então porque ele não é cancelado como estão fazendo com o Taika? A resposta á óbvia: O algoritmo que instiga a discórdia no X e no YouTube sobre o diretor, não tem o mesmo peso ao quadrinista e isso se dá porque Alan Moore não depende das redes sociais para propagar seus trabalhos ou suas ideias. Seu leitor atual não é o nervosinho e ansioso que fica esbravejando pela internet. Diferentemente de Waititi, que tem seus produtos do MCU em contato primordial com este tipo de gente, que sejamos justos, é realmente o público alvo de estúdios e formadores de conteúdo, Moore fala muito para fora da bolha da internet. Quem fala sobre Moore, a maior parte das vezes, discute sobre ele na vida OFF. E a vida OFF não permite os comentários taxativos, é mais complexo e muito mais plural. Fora que Alan Moore já se tornou uma ideia, enquanto Taika, acertadamente, é a prova que ser autoral incomoda os adoradores de conglomerados enlatados que mantém seus status de deidades, e dentre eles, sempre haverão os que se valem da idolatria alheia. A esses que caem no conto do vigário, só resta o extremismo. 

Isto posto, um pouco de lógica: Ninguém é obrigado a se dobrar àquilo que trabalha. Esta fala do diretor pega o nervoso no contrapé porque esfrega na sua cara que mais do que macaquear na cadeira do cinema como ato gutural de êxtase, filmes são feitos não pelo fan-service, mas, em primeiríssimo lugar, pelo dinheiro. Não há e nunca haverá amor de diretores, atores e roteiristas se, antes disso, o cheque não compensar. E o que Taika fez, nada mais nada menos, foi mostrar, e nos lembrar, que aquele que cede sua força trabalhadora, nem sempre está feliz com o que faz. Bem-vindo ao mundo real. 

Abs, Saitama. 

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