segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Saitama Critica #3: Sangue na Neve - Livro





Alguns dias atrás eu estava olhando minha estante e vi que tem vários livros que nunca fiz crítica.

Então aí está o primeiro que eu devia ter feito uma análise crítica desde o ano passado. Ele tem violência, tiro, sangue, dislexia e talvez um pouco de amor. 

Senhoras e senhores: Jo Nesbø com Sangue na Neve.

Minha primeira e, por enquanto única, inserção no mundo de histórias de thrillers policiais. Não é um gênero que eu desgoste (tanto que Boneco de Neve do autor está aqui pra ser lido), mas não é algo que eu sinta a necessidade de seguir fielmente. Esse livro foi um daqueles exemplos de compra (na verdade uma troca em sebo) que eu não esperava pegar, a capa era instigante e o sobrenome Nesbø, com esse ozinho com traço no meio parecia impôr respeito.

Então, como vocês devem ter percebido, adquiri a obra na mais pura e simples ignorância.

EDIÇÃO FÍSICA

Com 156 páginas, Sangue na Neve foi escrito e lançado em 2015. A edição publicada no Brasil pela Editora Record vem com capa e contracapa cartonadas, primeira e segunda orelhas e em papel Off-White, com tom de amarelo e ranhuras que se assemelham ao Pólen Soft Bold.

Destaque para o sangue em alto-relevo da capa, áspero. Num trabalho editorial muito bom da Record.

Não há erros de ortografia ou digitação.

CRÍTICA
Como o protocolo exige, à sinopse: Olav é um homem que não sabe fazer muitas coisas na vida. Não dirige bem, é um péssimo assaltante que fica com pena das vítimas, não sabe trabalhar com drogas e se apaixona fácil. Mas ele sabe matar. Por isso recebe de Daniel Hoffmann, um traficante, o "emprego" de assassino profissional. Mas tudo muda o dia em que Daniel pede para assassinar sua esposa e Olav decide que fará de tudo para protegê-la.

Diga-se de passagem: fico admirado como Jo Nesbø conseguiu extrair tanto de uma história simples sobre vingança e assassinato. Fazer isso em 156 páginas e em 21 capítulos é quase um convite a perceber que não há muito o que contar. Como é um Romance realmente curto, Jo se concentrou em dois fatores.


O primeiro é fazer das situações algo de rápida resolução. A dialética é ágil, carregada de peso e dura pouco. No máximo uma página e meia e sempre apontando o próximo passo a ser seguido, sem se prender à detalhes que já passaram, focando no progressismo da trama e em seu desenvolvimento. Há muitas trocas de ambientes. Cabines telefônicas, peixaria, velório, apartamentos, metrôs. Isso tudo dá frescor e ajuda a transformar a aleatoriedade num ato de luta contra a própria simplicidade da obra.

Seria injusto dizer que essa tentativa é perfeita. A história é visivelmente pré-determinada para ir de um ponto a outro, sem muitas surpresas e poucas subversões. Apesar de prender o leitor na cadeira até seu fim, é muito mais pela ambientação de Oslo que é vívida com suas neves e ambientes fechados precários e pela maneira que o personagem principal é desenvolvido.

E nisto há mérito em Nesbø, que resiste à tentação de usar mortes como muletas narrativas. Elas são pontuais, com conteúdo e que explicam muito mais do que apenas o meio que Olav trabalha, mas do próprio Olav.

Sabendo que Sangue na Neve é uma obra limitada pela ideia pobre, o autor mostra ciência que precisa se aprofundar na mente de Olav para que o livro por si só tenha conexão com o leitor. À princípio o protagonista é muito simples. Ele é ruim em quase tudo, só sabe matar e se apaixona pela mulher do chefe. Ele é apresentado como alguém limitado intelectualmente, que sofre de Dislexia* (Ver Glossário Informal ao fim da crítica), o que não significa burrice. E isso fica claro nas páginas que destrincham o personagem.

Há um certo lirismo filosófico em suas reflexões, assim como em seus pensamentos cotidianos. Não é apenas uma tábua rasa que mata por dinheiro. Ele se questiona, ressente, questiona, mostra esperteza quando significa buscar a própria sobrevivência, pensamento tático e um sangue frio que o envolve quando o trabalho precisa ser feito. 


O fato de ser um Narrador-Personagem ajuda muito no senso de verdade dessas digressões. Seu passado é contado pela ótica dele, seu presente também. Há uma metalinguagem nisso já que ao menos três vezes ele faz piada com o fato de escrever a própria história como prefere mesmo que a realidade não condiga com aquilo. Aqui, uma última piada autorreferencial a Nesbø quando Olav diz:

"Como num livro, quando o autor decide em que momento vai acontecer algo que vai ocorrer, porque ele já avisou antes. Há um lugar apropriado na história, então é necessário esperar um pouco para que aconteçam na ordem certa. (...)
E então chegou o momento."

Esse recurso metalinguístico é usado por Nesbø com frequência na narrativa de Olav. Antecipar ao leitor o que planeja, fazer acontecer e ver se deu certo. O que move 90% da trama não é a surpresa e sim conhecer pequenos atos que humanizem o protagonista para que você sinta-se parte dele até sua catarse.

O humor do livro é extremamente pontual e vem de forma inocente. Normalmente em citações que beiram o cinismo, existe muito para se rir nos raros momentos, pois realmente parece involuntário e contrasta bem com o tom cinza de todo o resto.

Desta forma, "introspecção" da obra é proposital, atrelando Arco de Identidade* ao Húbris, Ate e Nêmesis* proposto, já que ele comete um erro crasso na missão (que seria spoiler eu dizer aqui). Causando um efeito interessante que, de certa forma, exige demonstrar que Olav como um homem que se  auto-deprecia mais do que realmente é. Ele consegue ser inteligente, chegando ao ponto de saber o que fazer nas horas certas, corrige mentalmente o chefe que fala errado, escreve dizendo que errou na ortografia, mas depois percebe-se que ele fez algo não apenas belo como também ausente dos mesmos erros que ele dizia ter cometido. Mas o mais impressionante é como ele dá informações durante o livro e não erra nenhuma.

O que prova, tristemente, que ele não é limitado, mas sim um homem que nunca teve oportunidade desde sua infância para que pudesse se desenvolver adequadamente. Todos os avanços que ele alcançou esbarram nas opções que teve em sua vida.

Nesbø também usa sabiamente as regras ortográficas para os pensamentos do personagem. Se valendo de diversas vezes em que o travessão é usado para dar destaque às inserções de Olav, dando um ar leve e menos tenso ao que ele dizia.

"E a pele branca, branca, dos seus braços, seu rosto, seus seios, suas pernas — maldição, era como a neve cintilando ao sol, capaz de cegar um homem em apenas algumas horas. Basicamente eu gostava de tudo em Corina Hoffmann. Exceto de seu sobrenome."

"Eu tinha explicado — desnecessariamente — que minha casa não era grande coisa (...)"
 


Todo esse potencial não explorado de si mesmo acaba sendo ainda mais diminuído tanto na figura de Corina Hoffmann quanto de Maria, as mulheres de sua vida. Olav sente-se atraído por ambas, mas não há exatamente um conflito nisso. Ele tem mais riscos com Corina, ela é diametralmente mais bela que Maria. Então ele a ama mais. Para ela isso mostra que todos os homens são iguais, mesmo que Olav seja diferente. Há todo um clima noir na construção de Corina, o que é bem condizente já que a sensualidade dela é fruto das próprias necessidades que são simplesmente jogadas na cara do leitor quando menos se espera.

Fazer tudo isso orbitar em torno de Olav o faz um personagem rico nas entrelinhas e até dicotômico, pois ao mesmo tempo que se considera extremamente aquém, prova seu valor através daquilo que não enxerga em si mesmo. Mesmo assim, pode não agradar a todos que vão atrás deste thriller esperando ritmo frenético. Sendo uma temática preguiçosa no macro, mas intimista no micro, Jo Nesbø faz milagre com Sangue na Neve.

Transformando a unidimensionalidade de seu protagonista em algo a ser explorado na melancolia de Oslo em um Noir Escandinavo, onde neve e balas são igualmente marcantes. Longe entediar, mas que não parece se esforçar para dar um tom a mais de novidade, é um livro que traz bons conceitos no arroz com feijão literário, mas um pouco mais apimentado, além de um final interessante e de acordo com a estrutura planejada desde seu início.

☠ NOTA: 7,0

Espero que tenham gostado.
Semana que vem tem mais.
Abraços e boas leituras.
Saitama de R'lyeh.

🔴GLOSSÁRIO INFORMAL
*Dislexia - Transtorno que dificulta aprendizado da leitura e escrita. Além de não conseguir encadear letras e sílabas com facilidade, não correlaciona sons à sílabas formadas.
*Arco de Identidade - Construção de personagem focada em seu caráter.
*Húbris/Ate/Nêmesis - Existente originalmente na mitologia grega (Mais especificamente Ícaro), fala sobre arrogância (Húbris), erro pela arrogância (Ate) e castigo pelo erro (Nêmesis). Pode ser integrada tanto ao Arco de Identidade, quanto a Jornada do Herói (já citada AQUI).  


👉OBS: Como Sangue na Neve não tem adaptação cinematográfica, coloquei três fotos de outras duas adaptações de Jo Nesbø pra deixar o post mais legal. As duas primeiras são de Headhunters (2011) e a terceira é de The Snowman (2017).
👉 OBS²: Houve uma espécie de continuação espiritual de Sangue na Neve que foi lançada em 2018, chamada O Sol da Meia-Noite. Quem sabe um dia eu leia.



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