segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Saitama Critica #2: Celular - Livro



E aí, já mexeu no seu celular hoje? Fuçou no teu Whatsapp, caixa de e-mails ou até mesmo o Telegram? Você vive sem essas coisas?

Com essa premissa Stephen King escreveu Celular. Mas quanto livro, é relevante?

Depois de um mês e meio fora do meu gênero predileto, é bom estar de volta ao lar. Expectativa de sangue, pavor de virar a página e aquele sentimento incômodo bom. Não que outros gêneros literários não me fascinem, mas terror sempre terá aquele gostinho de leitura que realmente me completa. Por isso, como prometido um tempo atrás a vocês que acompanham o Família Marvel, aqui está um dos meus escritores prediletos mais uma vez.

Bora lá?

📱 EDIÇÃO FÍSICA


Celular foi escrito por Stephen King e publicado em 2006. A edição lida é pela Editora Suma de Letras, de 2018 e tem 384 páginas, capa e contracapa cartonadas, e vem também com primeira e segunda orelhas. As páginas são em pólen soft, ou páginas amarelas lisas e não há erros ortográficos.

📱CRÍTICA

Como de praxe, à sinopse: De uma hora para outra, todos os celulares enviam um sinal que torna as pessoas irracionais e extremamente violentas, causando uma onda de terror por todos os lados. A sociedade entra em colapso. As únicas pessoas que não se transformaram em seres violentos são chamados de normmies, por não usarem celulares e, por isso, não estarem vulneráveis ao Pulso, nome dado ao acontecimento. Neste seleto grupo de sobreviventes, encontra-se Clayton Ridell que precisa achar sua família e seus novos amigos que o acompanham na jornada. Tudo isso em meio à mudanças comportamentais dos Fonáticos. 

Só pela sinopse já fica claro que Celular tende a ser crítica sobre os efeitos que a tecnologia tende a causar em nós, consumindo tudo rapidamente, isolados para ouvir música, sem interagir com as pessoas ao lado, mas conversando sem parar com outras através de aplicativos ou plataformas. Sendo uma ficção especulativa, o livro tem subgêneros característicos como terror, horror, provocações sociais e, claro, a exacerbação da realidade em busca de um "alerta" social. Não por menos Stephen King, já nas primeiras páginas, escreve: 
Para Richard Matheson e George Romero. Celular, através disso, tem a intenção de entregar uma história tensa, enquanto tenta espelhar suas temáticas nos consagrados Eu Sou a Lenda e A Noite dos Mortos-Vivos

O grande problema é que a obra não passa do raso, conseguindo ser apenas medíocre.




Usando a figura de Narrador-Observador, King leva cinco páginas para apresentar Clay, contar porque ele está a um Estado de distância de sua família e apresentar o início do apocalipse tecnológico com um gore pesado.

De início, no caos instaurado, há alguma tensão que por diversas vezes é deixada de lado para conversas expositivas desnecessárias que desmontam todo o nervosismo e momentos alongados (Onde o personagem leva mais de 25 páginas pra sair do meio da rua, durante a carnificina inicial da história), o que torna o processo de leitura pouco empolgante pela falta de credibilidade.

Com essa quebra, perdem-se páginas valiosas para que pudéssemos nos apegar aos personagens, jogando o ato, precocemente, direto na Complicação* (ver Glossário Informal ao fim da crítica). Não há aprofundamento algum e foca-se longamente em parte do processo de sobrevivência. Quando convém há poucos Fonáticos (nome dado aos "zumbis"), mas quando o autor sente que se arrasta demais, ele coloca alguns mais como um alento do que como parte da experiência. E esses roteirismos são sentidos boa parte do tempo.





Também não há conexão com as raízes do protagonista de maneira que a relação entre leitor/personagem aconteça organicamente. Como a Apresentação fica em pequenos e apressados detalhes, não há aproveitamento. O personagem é o que é, está onde está e é isso. Você que se acostume. O que há pra ver de Clay é apenas uma unidimensionalidade arrastada: Ele é desenhista e está preocupado com a família, que em muitos momentos esquece por páginas a fio. E é isso. Numa trama de quase 380 páginas, neste caso, torna-se  uma construção de persona insuficiente. 



Até mesmo os coprotagonistas (Tom e Alice) sofrem do mesmo problema. São rasos e nada oferecem de camadas. Tirando Alice, que funciona melhor como coprotagonista medianamente mais desenvolvida (o que não é satisfatório para uma trama dedicada à críticas sociais), todos têm funções específicas. Tom é mais inseguro, há o CDF Nerd que tem respostas para quase tudo, outro que é a voz da razão e instigador. Sobra para Clay a liderança, pois mesmo sendo apenas um desenhista, quase sempre sabe o que fazer, onde fazer, como fazer e porque fazer. Longe de ser um MacGyver (da extinta série Profissão: Perigo), mas não há situações que exijam esforço dele por mais de 2/3 do livro. Quando elas aparecem, surgem também os roteirismos da trama. E essas facilitações são bem claras. Precisa de gasolina? Tem ali, atravesse a rua. Precisa de comida, tem uma cozinha ao lado do cômodo. Quer armas? Coincidência! Seu novo amigo tem um vizinho que guardava até metralhadora e munição. Usar este conceito em excesso é pedestre. Não há lógica e tira a imersão.

Lembrando também que, como o protagonista está longe da família e quer reencontrá-la, a história se condena a ser retratada como um ato de peregrinação, com raros momentos off-roads. E sim, são enervantes no pior sentido do termo. Pouco agregam e quando há algo que possa dar uma guinada, o tranco é desproporcional.

Assim, se a longo prazo o objetivo é que Clay descubra como está sua família (que não sejamos ingênuos: a esmagadora maioria dos objetivos dos protagonistas de Stephen King se resolve apenas no Desfecho), a curto não há muito o que fazer. Andar, fazer algo irrelevante ou roteirístico, andar, morre alguém, volta a andar. Normalmente o autor preenche com desenvolvimento, psiquê, debates relevantes, ou horror em doses homeopáticas para preparar o leitor para momentos cirurgicamente planejados, mas em Celular há o vazio. E nem isso pode ser usado como crítica social, já que esse ócio vem da escrita e não da função narrativa.

Sobre roteirismos, há um bom exemplo: trecho onde o jovem Jordan e o Diretor cooptam Clay, Tom e Alice para realizar uma tarefa ingrata, o que eles fazem de forma fácil (muito mais alongada pela narrativa de King do que a história propriamente dita) e tem consequências profundas para o grupo até o final da obra. Ok. Qual é a finalidade de fazer algo tão perigoso para dois completos estranhos se sua família está em perigo e cada segundo é precioso? Clay passa boa parte da obra questionando (e negando) seu o heroísmo, então, é incoerente, mas o livro precisava da ação feita apenas para agitar as coisas e mudar o status quo para algo que já carecia de profundidade antes. E mesmo assim, não se sai muito vitorioso.

Por este aspecto, talvez até possa ser argumentado que os toques de Naturalismo (Clique AQUI para ver Glossário Informal com significado de Naturalismo) fossem discretos neste caso, já que há o pior externalizado nos personagens e genocídio fosse solução. Ainda assim fica tão perdido ao fim da obra que é difícil acreditar que personagens  como Jordan depois faria em comparações a um computador e seus worms e mostraria como tal atitude extremada foi em vão.

Eu poderia parar por aqui, mas tem mais.

A imprecisão de alguns personagens também cansa. Os mesmos que decidem acompanhar Clay na jornada são os mesmos que desistem e vão embora mesmo com a jornada ainda incompleta. Tudo para que seja justificado a chegada de um novo grupo que os leva embora e depois retornem com o mesmo grupo pra dar importância "surpresa" a eles. Página 278 e ainda há personagens sendo apresentados que terão importância fundamental a uma obra que termina na pág. 379. Se mesclar Conflito com Apresentação não funcionou, apresentar mais pessoas quase na beira do Clímax (King é conhecido por resolver a trama faltando apenas 30/40 páginas para o fim do livro) também não funcionaria e só serviu pra inchar algo que já agonizava na escala micro.

Outro ponto é uma das incoerências narrativas apresentadas quanto ao nome "Fonáticos". Depois de um dado momento, um personagem A muda o nome deles (sem justificativa) para Fonoides. O erro é quando um personagem X que não tem relação com o grupo principal deixa um bilhete escrito dias antes da troca de nome e se refere aos transformados como Fonoides mesmo ignorando o fato que não havia como X conhecer o nome novo. Não é apenas errado, mas beira o preguiçoso.

Outro erro: Em determinado trecho (Pág. 248, Cap.9), há uma repetição de frase. num parágrafo é escrito "Clay se sentou com os dois" e três linhas depois a mesma frase está repetida. Se isso é um erro de digitação de King ou da Suma, só a edição original em inglês para dizer. Mas está errado mesmo assim.

Há também algumas coisas forçadas na história, como a necessidade em
shippar Clay com Alice mesmo que ele tenha 28 anos e ela 15. Não chega a ser polêmico como IT e a famosa "orgia" de crianças (que nem chega a ser orgia de verdade), mas é constrangedor ler coisas como "ela segurou seu pulso como se fossem namorados" ou "ele a olhava e via como estava linda". Certos comportamentos também são praticados sem uso de tecnologias (ainda que a mesma o potencialize), King deveria saber disso ao passar a mensagem certa da forma pouco prática enquanto a mensagem errada ele passa de forma certeira.

Tudo isso fez eu parar de me importar com todos os personagens lá perto da metade da trama. A 
Jornada do Herói* é feita de maneira tão pobre e desinteressada que soa quase iniciante em sua construção e exploração da maioria dos conceitos. 





Do que mais me agradou disso tudo foi a evolução dos Fonáticos até determinado momento. De seres irracionais exagerados até interessantes comparações com Windows (como seres igualmente exagerados), por mais que essas tenham virado muletas em vários momentos. No geral, depois de um tempo, resta muito pouco de crítica social, até perto da parte que eles conseguiam amplificar músicas ou outros "upgrades" e pela bizarrice estava valendo a pena, mas depois se perdeu pelo "nada" que aquilo serve a menos para comunicação.

Ao menos Stephen King acerta no visual dos antagonistas. Alguns são limpos, mas com o passar do tempo fedem por causa da sujeira, ferimentos purulentos, sangue seco em seus corpos e suores. A descrição física deles é palpável e interessante. Até uma certa altura do Romance, o comportamento pouco previsível e suas surpresas também são um alento em comparação a protagonistas tão mecânicos e com pouco a dizer. 



Falando em Clímax, foi coerente com tudo o que foi apresentado antes, ou seja: pobre, simplista, fraco e (de novo) com facilidades de narrativa literária. Com um plot twist desinspirado que é usado de forma vaga como técnica de Arenque Vermelho*, tudo isso se perde na falta de inspiração e escrita seca onde o microverso do personagem, que pouco funcionava antes, continua na mesma letargia quando busca crescimento. Já o Desfecho é feito na medida dramática um tanto acertada e profundidade um pouco mais sincera a Clay, mas erra ao abrir demais o final depois de uma jornada que falha em entregar aquilo que promete. Finais abertos, quando bem feitos, podem ser uma recompensa, mas aqui pouco diz. Está apenas incompleto, o que não surpreende já que depois de tudo o que escrevi, tive a impressão que Stephen King também estava. 


Ao terminar Celular me lembrei dos velhos "tijolões". Funcionais para a época, mas incômodos e por vezes com uma sensação de desnecessidade já que outros telefones daquele período eram quase tão bons quanto ele. Velhos tempos em que a serventia valia mais do que um produto novo de nome incrementado.     

📱 NOTA: 3,0
Então é isso. Espero que tenham gostado. 

Boas leituras.
Abraços,
Saitama de R'lyeh

🔴
Glossário Informal
*Complicação - Parte integrante de uma Narrativa completa, simboliza a apresentação dos confrontos principais e desenvolvimento de personagens. Narrativa é dividida em Apresentação, Complicação, Clímax e Desfecho
*Arenque Vermelho - Técnica que consiste entregar pistas falsas durante a obra, enquanto o verdadeiro elemento que enriquecerá a história é apresentado sutilmente, sem que o leitor perceba até o momento oportuno, onde há virada na trama. Juntamente a Arma de Tchekhov, Arenque Vermelho visa contrapôr o conceito de Deus Ex-Machina com mais complexidade e lógica. 
*Jornada do Herói - Estrutura criada por Joseph Campbell em O Herói das Mil Faces que consiste em parametrizar o crescimento de um protagonista com elementos mais detalhados.
São 12 Passos:
1) Mundo Comum;
2) A Chamada;
3) Recusa ou Reticência;
4) Mentoria;
5) Cruzamento do Primeiro Portal;
6) Provação, Aliados e Inimigos;
7) Aproximação;
8) Provação Difícil ou Traumática;
9) Recompensa;
10) O Retorno;
11) Ressurreição;
12) Regresso com a Fórmula.


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