Abrindo a Caixa de Lemarchand pela última vez.
Depois de uma leitura primorosa de Hellraiser – Renascido do
Inferno (que você pode conferir a crítica AQUI), sem pensar duas vezes adquiri
Evangelho de Sangue, a continuação que promete terminar a saga de Pinhead e dos
Cenobitas.
E eis nos próximos parágrafos o que achei deste livro.
EDIÇÃO FÍSICA
Com 317 páginas, Evangelho de Sangue foi escrito por Clive
Barker e lançado no Brasil pela Editora Darkside em 2016. Possui capa dura,
páginas pólen soft bold e fitilho de cetim na cor carmesim.
Não foram encontrados erros de ortografia ou digitação.
CRÍTICA
À sinopse, como de praxe: Harry D’Amour é um detetive do
sobrenatural que inicia um caso onde vai se encontrar com Pinhead em pessoa e
descobre que o Cenobita tem planos que vão além de dar “prazer” para suas
vítimas e que envolvem o investigador paranormal e pessoas do seu convívio mais
do que ele gostaria.
Saindo do pressuposto de que você leu minhas críticas de O
Sol da Meia-Noite (Clique AQUI) e Os Testamentos (Clique AQUI), deve estar
familiarizado com a quantidade de vezes que citei sobre expectativas de
continuações. São, por muitas vezes, irreais e injustas. Como Evangelho de
Sangue também é considerada uma continuação, em teoria, é possível encaixar Evangelho... dentro deste nicho.
Quando digo “em teoria”, é pelo fato de que a obra é confusa
neste sentido. Ela se propõe a ser um retcon - Obrigado Riptor - que, ao mesmo tempo, insere elementos dos filmes. No
fundo é tudo isto junto e quando uma obra quer ser demais, normalmente o
resultado é um só.
A Caixa de Lemarchand neste livro também traz seu nome cinematográfico: Configuração do Lamento |
Evangelho de Sangue começa muito bem em seu prólogo. Dá um
tom muito sinistro, macabro e pessimista. O gore é detalhado e a escrita de
Clive Barker é extremamente visceral. O sentimento de repulsa é eficaz, assim
como as nuances de mistério que do qual o livro insere. Com certos detalhes
ocultados de forma organicamente, nem todas as respostas são dadas sobre alguns temas
abordados no primeiro livro, como o fato do Pinhead ter se tornado homem (no
primeiro volume era uma mulher) ou porque ele não precisa mais da Caixa de Lemarchand
para transitar entre seu local de origem e a Terra, ainda que existam pequenas dicas. É instigante e promete
entregar uma obra chocante ao mesmo tempo afetada pelo sexo e pela religião.
O grande problema de Evangelho de Sangue é que, além de sua
indecisão sobre o que quer ser, as coisas boas que ele dá duram pouco tempo. O tom do
prólogo termina rápido e o que se vê é um sucessivo jogo de tentativa e erro
sem direito a ressarcimento. A sensação que fica é que a obra foi escrita por
muitos Clive Barker’s diferentes, todos com muito a dizer, mas pouco espaço
dentro de um livro de pouco mais de trezentas páginas. Ao sabor do autor, ideias
começam e terminam sem maiores explicações, conceitos são rearranjados e as
promessas do início, desfeitas.
Tudo o que o primeiro volume teve de especial como a
poética, a violência gráfica estimulada por um amor proibido, desejos
impossíveis e supressão de desejo em nome de uma moral são abandonados em troca
da falta da estética e de um desejo de acenar muito mais aos fãs dos filmes,
dando referências e alterações, do que aos fãs da literatura que conseguia ser
muito mais profunda do que o simples horror. Não haveria nada de errado se a
ideia fosse envolvida de concretude, mas não há nada além do mal intrínseco das
sequências: o temido “mais e maior”. Em resumo, estes elementos estão lá apenas
para unir sem maiores pretensões e mostrar que o autor não desconsiderou os longas-metragens
do Pinhead.
A trama é confusa e com idas e voltas que mostram que, ao
menos aqui, Clive Barker não foi feliz nem no desenvolvimento de roteiro ou com
os personagens. Com exceção de dois destes que têm mudanças fundamentais e primárias,
todo o resto termina como começa. Não há aproveitamento, não há alto
desempenho. O que começa como uma obra de horror de alto nível, diminui o ritmo
para um suspense e termina como um “Conta Comigo” aventuresco, como um filme de equipe, mas esvaziado. Até o gore é
reduzido à raros momentos e mesmo assim, camuflado. Este ponto, faça-se
justiça, consegue ensaiar um retorno às origens sexuais, mas não passa da
intenção e, seguidamente, do abandono do autor.
Harry D’Amour tem seu início funcional. Soturno, assombrado
pelo seu passado e solitário, mas sofre com a necessidade de mainstream e se
torna, de uma hora para outra, brincalhão e fanfarrão mesmo com uma densa ideia
sobre seu destino. Ele sofre com diversos roteirismo psicológicos que o tornam
não apenas confuso, mas desinteressante e óbvio.
Os personagens orbitais, ou coadjuvantes, são pretensiosos e, mesmo assim, unidimensionais. Talvez seja fácil dizer “mas são coadjuvantes”, não
obstante, importante citar que alguns deles estão fixos e até dividem
protagonismo desde 2/5 do livro. Alguns aparecem como grandes ideias e são
simplesmente limados da história ou estão lá com desfechos irrisórios. São
rasos e pouco importantes. Os acontecimentos com eles não têm peso, sequer uma
consequência significativa. E essa falta de repercussão é sentida em quase
qualquer outra situação, tornando-se vago. Há de se reconhecer que a existência
de três personagens LGBT’s tem lá seu valor, mas não há, proceduralmente, nada
que os valorize quanto indivíduos.
Pinhead |
Agora, o pior da área de personagens está, nitidamente, para
Pinhead. Barker acerta ao dar ao Cenobita ares individualistas, maquiavélicos,
mas que se tornam previsíveis com o passar do tempo. Ele é um personagem que
incautos chamarão de enigmático, mas eu arrisco a dizer que ele é mal
desenvolvido. Não há explicação para que ele esteja desgarrado da Ordem, ou
sobre a alteração de sua motivação já que, originalmente seu status quo é viver
em função de afligir sofrimento a quem abra a Caixa de Lemarchand, também não é
citada a mudança brusca de personalidade e nem mesmo porque seu sexo foi
alterado. Este último começa a ser pincelado no começo, porém, como outras boas
ideias de Barker em Evangelho de Sangue, é escamoteado sem mais nem menos.
Clive Barker é um escritor de escala macro, sem aprofundamentos nas
descrições e isso é sentido no início da obra. Todavia, ao haver uma alteração
brusca na ambientação, ele se rende à possibilidade ser descritivo, previsível
e detalhista de uma hora para outra, o que não funciona pela diferença crateral
estilística apresentada de forma errática. E a partir disto, esta mudança em
sua narrativa segue até a última página. Infelizmente, o autor detalha o que
não precisava e raras as vezes acerta nos momentos que isso realmente se torna
necessário. É errático, pormenoriza o essencial e, no fim das contas, torna o
menos em mais quando ser menos seria o suficiente.
Há mais.
O Inferno da obra tem pouquíssima originalidade, flertando
com o ideal dantesco, mas não impressiona, além de sua importância na história
ser questionável e alongada demais. Os problemas de “humanização” do lugar
também existem. Este inferno é lugar civilizado, com cidades, florestas,
hierarquias, trabalhos, e (pasmem¹) demônios bons e apegados. Existe pelo menos
um destes que se torna protetor (pasmem²) de um humano e outros que ajudam pessoas. Até
existe uma explicação para o fato do lugar ser agradável, mas vai totalmente
contra a existência dos Cenobitas, estes aliás, são praticamente suprimidos e
limados, com raras e rasas citações.
Clive Barker, o criador de Hellraiser |
Já a dificuldade de Barker em criar espaços geográficos e
seus elos que funcionem na imagética é gritante. Seja na Terra ou no Inferno,
você não consegue linkar as localizações dos personagens. Tudo também parece
muito perto para, logo em seguida, soar muito longe. A velocidade com que se
viaja de um recanto a outro varia muito com a necessidade do autor de enrolar a
trama ou não, sem auxiliar o leitor na noção de localização e do quanto
precisa-se para chegar onde é necessário. Ironicamente, mesmo com o excesso do
tom descritivo, às vezes os locais soam muito parecidos.
E para terminar, vamos ao nosso momento Stephen King: Clive
Barker simplesmente não sabe a hora de acabar a história. São pequenos
desfechos atrás de pequenos desfechos que depois se revisitam interminavelmente
em suas páginas e por fim, acabam. Chega a dar desespero quando se percebe que
há 30 páginas para que o final chegue e Barker ainda esteja forçando o
leitor a se despedir de quem já não agrega mais à história. Se a obra era a
promessa de fechar a história de Pinhead, não era necessário agonizar a
narrativa.
Eu poderia citar mais três pontos aqui, mas como envolvem spoilers, não falarei deles.
Isto posto, Evangelho de Sangue começa muito bem, mas se
perde antes mesmo de chegar à metade. É presunçoso, inchado, cansativo, raramente impressionável, de imagética irascível (tirando a violência gráfica), com uma história furada e de narrativa
errática e pouco proveitosa. Dá-se a impressão que é um caça-níquel muito mais
do que uma obra que respeite a literatura e suas nuances. Tentando ser
diferente, apenas perde em conteúdo, abrindo possibilidades mais para ligar os
filmes à obra do que apresentar algo realmente consistente. E se é verdade que
sequências são avaliadas em detrimento de suas antecessoras, que fique aqui
cravado duas certezas: A primeira é que Renascido do Inferno continuará, dentro
de sua mitologia e dos livros de horrores em geral, insuperavelmente fantástica
e atual. E a segunda é que Evangelho de Sangue sempre assustará, mas muito mais
pela sua ruindade.
NOTA: 3,0
É isso. Espero que tenham gostado.
Abraços e boas leituras,
Saitama de R’lyeh
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